Nessa tarde estávamos empenhados em descobrir, primeiro, a Catedral de San Cristóbal de La Habana e depois a rua do Empedrado. Íamos à procura de La Bodeguita del Medio. Passamos sem pressa por um outdoor do padre/professor Felix Varela com a sua frase solene "La patria a nadie debe, todos sus hijos la debem sus servicios", a seguir entramos por uma rua estreita onde fui surpreendido por uma enorme montra de algo que me pareceu um salão de cabeleireiro: "Langwith - estética canina e felina". Eis qualquer coisa que nunca contei encontrar na Habana Vieja, exclamo surpreendido, porém Crispina sorri entendida, muitos turistas chegam a Cuba acompanhados dos seus cães e gatos, explica..Finalmente ficámos em frente de uma tabuleta com fundo amarelo, aros verde-claro e escrito a preto "La Bodeguita del Medio". Parámos junto à porta, sobretudo porque o local estava cheio de gente barulhenta. Tivemos tempo de ler duas placas de bronze, a de cima dedicada a Ángel Martínez, "el fundador de La Bodeguita del Medio la autentica bohemia de la Habana"; a de baixo, a Nicolas Guillen, "nuestro poeta nacional, cliente asiduo y promotor incansable de La Bodeguita del Medio", a quem, aliás, dedicou um soneto que consta de uma espécie de toalhete de papel pardo sobre o qual se colocam os pratos na parte que funciona como restaurante: "La Bodeguita es ya la bodegona,/ Que em triunfo al aire su estandarte agita,/ Mas sea bodegona o bedeguita/ La Habana de ella con razóm blasona"....Guillen é apresentado como filho de pais mulatos e tido como o incontornável poeta da nacionalidade cubana, aquele que "llevará al nacer el mestizaje blanquinegro en sus venas, que será la síntesis de la cubanidad y que le dará, al mismo tiempo, la materia prima de su canto"..Os cubanos falam assim orgulhosamente desse seu poeta que assume "directamente su condición de hombre negro, e inaugura un proceso de conocimiento de su condición humana al traer a la poesía personajes y ambientes de las capas más populares y expoliadas...".Faz tanto lembrar a forma encomiástica como os brasileiros falam do seu mulato Machado de Assis que a pergunta é inevitável: será Cuba um país racista? Ou melhor, haverá racismo em Cuba? Inicialmente é como se o tema fosse tabu, todos fogem a uma resposta direta, ninguém se atreve quer a afirmar quer a negar. Optam por contar anedotas a respeito: em Cuba, o preto ou é desportista, ou músico, ou delinquente..Da literatura cubana sei que um dos grandes problemas que por longos anos se manteve insolúvel para os independentistas foi sobretudo adivinhar a posição que o negro acabaria por assumir, se a favor de uma Espanha colonizadora, se a favor dos independentistas brancos, sobretudo porque muitos destes continuavam advogando a continuação da escravatura..Sim, acabam por admitir, há ainda racismo em Cuba. Com a Revolução e as suas grandes conquistas, sendo a principal o ensino gratuito e obrigatório para todos, as coisas foram a pouco e pouco melhorando. Porém, ainda há! Sobretudo porque à partida os brancos já estavam numa situação de superioridade relativamente à generalidade dos negros, possuíam a terra, já frequentavam escolas, liceus, universidades. Para a grande maioria dos negros, o acesso à escola só começou com a Revolução....Entrámos numa acunhada Bodeguita del Medio com a solenidade de quem visita um templo. Já não havia qualquer espaço disponível junto ao balcão, completamente tapado por agitados turistas remexendo nas cadeiras ao som de uma furiosa salsa que um trio interpretava, de modo que indicaram-nos uma sala onde as mesas, já com talheres embrulhados em guardanapos de papel colocados sobre a toalhete de papel pardo, mostravam ser aquela a parte reservada a restaurante. Não queremos comer, elucidamos, e o jovem limitou-se a retirar os talheres..Entrar na Bodeguita significa no mínimo beber um mojito, completando desse modo o percurso de Hemingway no próprio coração da Havana Velha: "My Mojito in La Bodeguita, My Daiquiri in El Floridita!" Gelo, limão e rum, completa-se com soda, açúcar, duas gotas de angostura e unarama de hierb buena. Que nome mais bonito para a perfumada hortelã!