Foi um dos pontos mais polémicos da greve cirúrgica dos enfermeiros e um dos que mereceu chumbo da Procuradoria-Geral da República (PGR) no parecer publicado nesta segunda-feira à noite. O Conselho Consultivo da PGR considerou ilegal o recurso ao crowdfunding que financiou o protesto nos blocos operatórios, uma conclusão sublinhada pelo primeiro-ministro, que homologou a parte do documento relativa aos fundos de greve. Mas se a iniciativa de António Costa parece constituir um aviso à navegação para futuros protestos, numa altura em que se fala em greves na Educação com recurso a quotizações nas escolas, constitucionalistas ouvidos pelo DN garantem que o parecer da PGR só é aplicável à greve dos enfermeiros, não vinculando outras áreas..No despacho publicado em Diário da República na segunda-feira, o gabinete de António Costa é claro ao apontar a "extraordinária importância, não só para o setor da saúde mas também para todos os demais setores da administração pública", das conclusões relativas aos fundos de greve e à ilicitude de um protesto financiado através do recurso a crowdfunding . Conclusões, continua o despacho de reconhecimento do parecer da PGR, "que se afiguram particularmente relevantes, atendendo à ausência de regras no nosso ordenamento jurídico que regulem a concessão de donativos às associações sindicais e a constituição de fundos de greves, num contexto de crescente recurso a novas formas de financiamento que implicam, em muitos casos, donativos anónimos"..Depois de já ter afirmado no fim de semana que os sindicatos dos enfermeiros tinham agora uma boa oportunidade para repensar formas de luta, o despacho de António Costa parece preparar o terreno para futuras lutas jurídicas noutras áreas, como na Educação, onde se perfilam greves prolongadas caso as negociações com os professores não produzam efeitos. Mas pode este parecer ser usado em outras greves? Não, defendem dois constitucionalistas ouvidos pelo DN. "Este parecer só se aplica a esta greve", responde taxativamente Jorge Reis Novais. "A partir de agora os enfermeiros foram informados da ilicitude e não podem advogar desconhecimento das consequências disciplinares da greve. Mas não se aplica a protestos, por exemplo, na área da Educação, que teriam de ser analisados de forma isolada."."Sindicatos dos professores são contra crowdfundings públicos".Na semana passada, antes de serem convocados para nova ronda negocial sobre a devolução do tempo de serviço, os sindicatos dos professores ameaçaram avançar no 3.º período para formas de luta "mais radicais", que podiam passar pela greve às aulas do 12.º ano ou um boicote às avaliações. Formas de luta que podiam ser financiadas pelos próprios professores, como muitos deles propõem, através de fundos criados exclusivamente dentro das escolas. Essa é, aliás, uma diferença fundamental em relação à greve cirúrgica dos enfermeiros e que deve ser salientada: neste caso, não há recurso a um crowdfunding em plataformas públicas - "os sindicatos dos professores são e continuarão a ser contra crowdfundings públicos, mas não nos compete dizer como as escolas se devem organizar", reforçou ontem o secretário-geral da Fenprof, Mário Nogueira -, mas sim a quotizações apenas entre os professores. "Esse modelo de quotizações nas escolas parece-me perfeitamente lícito", entende Reis Novais, que acrescenta que é normal os professores constituírem fundos, como já fizeram na greve às avaliações do final do ano letivo anterior..Jorge Bacelar Gouveia concorda que o parecer da PGR não se estende a outras profissões ou a futuras greves e acrescenta que a homologação por parte do primeiro-ministro da parte do crowdfunding vincula apenas os enfermeiros que aderiram a esta greve. "O que António Costa diz é que faz sua a interpretação da PGR e aplica aos funcionários públicos essa interpretação, neste caso aos enfermeiros. Como há um dever de obediência na administração pública, os conselhos de administração dos hospitais devem seguir a ordem do primeiro-ministro. O que não quer dizer que os enfermeiros que sejam alvos de processos disciplinares não possam sempre recorrer para os tribunais", adverte Bacelar Gouveia, que salienta que "os tribunais não estão de forma alguma vinculados a este parecer"..Pedro Santana Lopes também comentou o tema nesta terça-feira, considerando ser "complicado" que o parecer da Procuradoria-Geral da República sobre a greve dos enfermeiros possa ser estendido a toda a função pública. Santana Lopes, jurista de formação, apontou que o parecer "foi suscitado a propósito desta questão", e disse ter "as maiores dúvidas de que possa ser aplicado" a toda a função pública. "Acho que se aplica a este caso e não pode ser, nem deve ser, estendido a outros.".Crowdfunding é ilegal?.A propósito do crowdfunding que suportou a greve cirúrgica dos enfermeiros, a PGR argumenta que é ilegal ser um grupo de enfermeiros e não um sindicato a criar um mecanismo para compensar os enfermeiros pelas perdas salariais. "Não é admissível que os trabalhadores aderentes a uma greve vejam compensados os salários que perderam como resultado dessa adesão, através da utilização de um fundo de greve que não foi constituído, nem é gerido pelos sindicatos que decretaram a greve", diz o parecer.."Essa situação constitui uma ingerência inadmissível na atividade de gestão da greve, que incumbe exclusivamente às associações sindicais que a decretaram", prossegue o documento, acrescentando que este fator, só por si, pode determinar a ilicitude da greve, caso se "demonstre que essa utilização foi um elemento determinante dos termos em que a greve se desenrolou"..Argumentos rebatidos por Bacelar Gouveia, que lembra que a angariação de fundos não está proibida e que "cabe a cada um dar a finalidade que quer ao dinheiro". "Tal como o direito à greve é legítimo, também é legítimo financiar os prejuízos que dela decorrem. É verdade que o trabalhador não recebe quando faz greve, mas se outras pessoas consideram a sua causa justa e decidem doar dinheiro para minorar os seus prejuízos isso é perfeitamente legítimo.".Reis Novais concorda que enquanto o legislador não regular os fundos de greve, "só devia ser considerado ilícito se ficar provado que os trabalhadores recebem de entidades patronais, partidos, etc". No despacho publicado em Diário da República, o gabinete de António Costa refere-se a este vazio legal, alertando para a necessidade de regulação nesta área. Uma intenção já manifestada pelo PS no início deste mês, quando anunciou que vai apresentar um projeto que proíba contribuições monetárias anónimas no crowdfunding, proposta que o PSD admitiu estudar..Negociações podem evitar "formas de luta mais radicais".Os sindicatos dos professores avisaram o governo na semana passada que o 3.º período podia ser marcado por formas de luta radicais, caso não fossem retomadas as negociações sobre a devolução dos nove anos, quatro meses e dois dias de tempo de serviço congelados. Negociações que o Ministério da Educação anunciou entretanto que vão ser retomadas na próxima semana. Na altura, os sindicatos admitiram ao DN que a proposta para fazer uma greve nos anos finais de ciclo, afetando a preparação dos exames do 9.º e 12.º anos, é das que reúne mais adeptos..Um protesto que, à semelhança da greve às avaliações em 2018, podia ser suportado por quotizações de professores nas escolas. Isto apesar de Mário Nogueira garantir que, no ano passado, a esmagadora maioria das escolas optou por fazer um calendário para perceber quem não participava nas reuniões. "Essa já é uma contribuição para a greve. Em Coimbra, na greve às avaliações do ano passado, o que percebemos é que 90% das escolas optaram pela rotatividade, até porque implicava um desconto pouco forte no ordenado, e não pelas quotizações", afirma Mário Nogueira, que ainda assim prefere focar atenções na reunião marcada para dia 25: "O que nos preocupa neste momento é o que o governo nos vai apresentar na segunda-feira, para que nem seja preciso recorrer à greve."