Nem só de festivais vive o verão cinematográfico. De tal modo que é possível conceber um evento que, não deixando de ser uma mostra de filmes, justifique outra designação. Por exemplo: "seminário". Assim será a 18ª edição do Doc"s Kingdom, "seminário internacional de cinema documental" que volta a realizar-se em Arcos de Valdevez - a sessão de abertura está marcada para as 18h00 de 1 de setembro, na Casa das Artes daquela vila do Alto Minho; o evento decorre até terça-feira, dia 6..Em boa verdade, a palavra "seminário" será francamente insuficiente para dar conta das singularidades do Doc"s Kingdom. Não se trata de um simples conjunto de "comunicações" ou "palestras", antes de uma "experiência imersiva" que, além de três sessões diárias (incluindo, por tradição, algumas surpresas), propõe também "debates ao ar livre com e entre cineastas, refeições de convívio e passeios.".Organizado pela Apordoc-Associação pelo Documentário, o Doc"s Kingdom é financiado pelo Instituto do Cinema e do Audiovisual/Ministério da Cultura, com o apoio do município de Arcos de Valdevez, integrando um programa de residências (Dear Doc) que conta com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian. A inscrição para todo o programa custa 190€; as inscrições diárias 50..O Doc"s Kingdom deste ano tem como título global "Gestos e Fragmentos". Como se escreve na apresentação disponível no site oficial [docskingdom.org], trata-se de reunir "gestos e fragmentos de viagens, encontros, lugares, despedidas, rastos e pistas de revoluções - à volta do sol ou na dobra da história, como aconteceu em Portugal há pouco mais de 48 anos"..A designação retoma o título de um dos filmes maiores que se fizeram no nosso país sobre o pós-25 de Abril: Gestos e Fragmentos (1983), de Alberto Seixas Santos. Sem esquecer que na sua teia de documentário & ficção, nele surgia, como ator, o grande documentarista norte-americano Robert Kramer, em cuja filmografia encontramos Doc"s Kingdom (1988), precisamente o filme cujo título foi adotado por esta iniciativa..Não admira, por isso, que a questão da preservação da memória constitua, uma vez mais, uma fundamental linha de força dos seis dias de cinema e debates em Arcos de Valdevez. O ano passado, por exemplo, o mote foi dado por O Movimento das Coisas, de Manuela Serra, obra fundamental na história do documentarismo português que teve a sua estreia comercial em 2021, embora sendo uma produção de 1986. Este ano, dois convidados podem simbolizar esse ziguezague, de uma só vez histórico e narrativo, entre passado e presente. São eles Boris Lehman e Paula Gaitán..O suíço Boris Lehman é uma das figuras lendárias do documentarismo europeu, por vezes cedendo à "tentação" da ficção. A sua obra, imensa e multifacetada, fundamenta-se numa observação metódica do mundo à sua volta, sem que isso lhe retire uma dimensão de autorretrato, à beira do confessional. Além do mais, há nele qualquer coisa de um "resistente", fiel às velhas técnicas de filmagem, já que, no essencial, trabalha com os formatos "menores" de 8mm, Super8 e 16mm..Quanto a Paula Gaitán, é autora de uma obra que pontua a história das últimas décadas do cinema brasileiro, desde que, em 1980, foi convidada por Glauber Rocha, com quem foi casada, para fazer a direção de arte do filme A Idade da Terra - mais tarde realizou, aliás, Diário de Sintra (2008), a partir das memórias da estadia do casal em Portugal, em 1981 (quando a Cinemateca Portuguesa apresentou uma retrospetiva integral do autor de Deus e o Diabo na Terra do Sol). As suas experiências cinematográficas são indissociáveis de um permanente diálogo criativo com outras artes visuais, nomeadamente a fotografia..Entre os participantes do Doc"s Kingdom encontramos também os portugueses Mariana Caló e Francisco Queimadela, artistas pluridisciplinares que trabalham como dupla desde 2010, tendo sido distinguidos com o prémio BES Revelação de 2012; os seus filmes conjugam-se, por vezes, com outras linguagens (fotografia, pintura, etc.), procurando e, de algum modo, desafiando as fronteiras entre o biológico e o cultural. A lista de convidados inclui ainda Alexandra Cuesta, cineasta e fotógrafa que trabalha entre o Equador e os EUA, e João Vieira Torres, artista franco-brasileiro em cuja trajetória se cruzam fotografia, cinema, videoarte e performance..Momento de particular ressonância simbólica será a projeção de Nanook of the North (1922), de Robert J. Flaherty, desde logo porque se trata de um dos títulos que este ano celebra o seu centenário. Por curiosidade, vale a pena lembrar que 1922 foi, de facto, um ano de vários filmes que ocupam lugares de culto na história e na mitologia do cinema, incluindo, por exemplo, O Doutor Mabuse, de Fritz Lang, Nosferatu, de F. W. Murnau, ou Robin dos Bosques, de Allan Dwan, com Douglas Fairbanks..Resultante de uma rodagem de vários anos, Nanook of the North documenta a vida de uma família "inuíte", na península de Ungava, no nordeste do Canadá, num registo que lhe conferiu o estatuto de pioneiro do género documental. A passagem do filme conta com a colaboração do Flaherty Film Seminar, instituição fundada em 1954, três anos depois do falecimento do realizador, pela viúva Frances Flaherty. A projeção, no domingo, dia 4, será seguida de um debate com a participação de José Manuel Costa, diretor da Cinemateca e fundador do Doc"s Kingdom..dnot@dn.pt