Para quê efabular, quando a realidade é tão rica de acontecimentos?

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Seguindo um rumo já conhecido, dois artigos recentes no DN, respetivamente de Leonídio Paulo Ferreira (22/8) e de Raul Braga Pires (26/8) vêm obscurecer a visão do que se passa hoje no Magrebe, em particular no que diz respeito ao Sahara Ocidental. Porque essa parece ser a finalidade, na tentativa de criar uma narrativa que afaste Portugal do cumprimento do Direito Internacional e da sua fundamental experiência, no pós-25 de Abril, de apoio à autodeterminação dos povos, conforme dita a Constituição da República (Artigo 7º) e se comprovou mais recentemente no caso de Timor-Leste.

A questão saharaui está viva e em desenvolvimento, embora isso não transpareça na comunicação social portuguesa. Por um lado, continua uma guerra de baixa intensidade, que lavra desde novembro de 2020. Por outro, o Enviado Pessoal do secretário-geral da ONU tenta desde novembro do ano passado reunir as condições que permitam recomeçar as negociações entre as partes - a Frente POLISARIO e Marrocos, com a assistência dos países vizinhos, a Argélia e a Mauritânia. Staffan De Mistura realizou em janeiro uma primeira viagem à região, e voltou em julho a Rabat para, de seguida, conforme anunciou o porta-voz de António Guterres, visitar o território saharaui (ocupado). Mas as condições impostas por Marrocos foram de tal ordem, que ele não as aceitou e cancelou a viagem.

A sua missão não é fácil, como recordou um dos seus antecessores, o embaixador norte-americano Christopher Ross, em testemunho escrito de 5 de julho passado: "Em Abril [de 2007], as duas partes apresentaram as suas duas propostas: Marrocos, uma ampla autonomia do Sahara Ocidental sob a sua soberania, a FPOLISARIO um referendo que incluísse a independência como opção e delineasse as relações estreitas que um Estado independente teria com Marrocos. (...) De 2007 a 2019, o meu antecessor, o meu sucessor e eu patrocinámos 15 sessões entre estas duas partes, com a Argélia e a Mauritânia presentes como Estados vizinhos. Infelizmente, nada que se possa chamar uma negociação alguma vez teve lugar, e a comunidade internacional tem todo o direito de saber porquê. A FPOLISARIO veio a cada sessão pronta para discutir ambas as propostas, mas Marrocos veio com uma importante condição prévia: que se discutisse apenas a sua própria proposta."

Até agora, esta situação não mudou. A 22 de julho, o senador norte-americano Jim Inhofe declarou: "Porque Marrocos não mostrou vontade de resolver a questão do Sahara Ocidental, os EUA deviam ponderar lugares alternativos para acolher os nossos exercícios militares anuais [que se têm desenvolvido] aí. Estou satisfeito pelo facto de os líderes que nomeamos para a US Africa Command e a USSOCOM terem apoiado esta opinião." Estas diligências foram confirmadas pelas autoridades mencionadas.

A luta política desenrola-se sobretudo no palco diplomático. Sucintamente, quatro casos dos últimos dois meses.

A República Árabe Saharaui Democrática é membro de pleno direito da União Africana (UA) desde 1984 e é reconhecida por cerca de 80 países no mundo (nenhum europeu). O governo do Peru liderado por Pedro Castillo reconheceu a RASD no ano passado, mas a 7 de agosto voltou atrás, por obra de um novo Ministro dos Negócios Estrangeiros, a quem o MNE marroquino telefonou, dois dias depois da sua tomada de posse. A oposição protestou e pediu a demissão do Ministro por leviandade na tomada de decisões. No dia seguinte à posse histórica de Gustavo Petro na Colômbia, este, enquanto Presidente do novo executivo, em cerimónia pública ao lado do MNE saharaui, Mohamed Salem Salek, confirmou o reconhecimento da RASD.

Marrocos tem pressionado e oferecido vantagens e benesses significativas a dirigentes de países que aceitem "abrir" consulados (ilegais, segundo o Direito Internacional, e fantasma, porque não há cidadãos nacionais que os justifiquem) nas cidades de El Aiun ou Dakhla, no Sahara Ocidental ocupado. Foi o caso que manchou a diplomacia e o Estado de Cabo Verde em 18 de agosto passado. O mesmo tinha prometido Donald Trump em 2020, mas o Senado norte-americano, no quadro da respetiva Comissão de Dotações, aprovou no início de agosto, pelo segundo ano consecutivo, uma proposta de orçamento para o ano fiscal de 2023 - nele insta o Departamento de Estado a estabelecer um mecanismo de direitos humanos na missão da MINURSO e a atribuir apoio financeiro aos esforços diplomáticos para facilitar uma solução para o conflito do Sahara Ocidental, reafirmando ao mesmo tempo a sua recusa em que seja utilizado na construção de um consulado dos EUA em Dakhla ou no funcionamento de tal projeto.

Sabemos que o Presidente do governo de Espanha, Pedro Sánchez, cedeu à chantagem marroquina, traindo mais uma vez as responsabilidades do seu país como potência administrante do Sahara Ocidental - que continua a ser, não só à luz do Direito Internacional, como do Direito interno (Resolução da Audiência Nacional de 4/7/2014). Tentando eventualmente emendar a mão, o Alto Representante da UE para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança, Josep Borrell, numa entrevista à estação pública espanhola RTVE, declarou a 23 de agosto: "A posição do Governo espanhol foi e é a da UE, ou seja, defender a realização de uma consulta para que seja o povo saharaui a decidir como quer que seja o seu futuro". Naser Burita, o MNE marroquino, afirmou a seguir em conferência de imprensa ter tido uma "discussão direta" com Borrell. No dia seguinte, o Alto Representante da UE deu uma nova entrevista, à agência EFE. Embora longe da postura de Sánchez, "esclareceu" que a solução para o problema do Sahara Ocidental "passa por uma solução negociada entre as partes", "no âmbito das Nações Unidas". "Não expressamos uma preferência sobre a forma de o fazer. Isso é da responsabilidade das partes. E é em particular da responsabilidade do Enviado especial [na realidade, Pessoal] do Secretário-geral das Nações Unidas, o senhor De Mistura, cujo trabalho apoiamos". Custa ver a humilhação de um dirigente europeu, mas é a sua escolha.

Teve lugar na Tunísia nos dias 27 e 28 de agosto a 8ª Conferência Internacional de Tóquio sobre o Desenvolvimento Africano (TICAD), que junta os membros da UA e o Japão. Marrocos fez o possível por afastar a RASD da participação nesta cimeira, como tinha tentado (sem o conseguir) no início deste ano em relação à cimeira UE-UA. Perante a receção da delegação saharaui, liderada pelo Presidente da RASD e Secretário-geral da FPOLISARIO, Brahim Ghali, recebido oficialmente pelo seu homólogo tunisino, Rabat retaliou. Num comunicado divulgado no dia 26/8 anuncia que se retira da Conferência e chama o seu embaixador na Tunísia para consultas. O governo anfitrião da TICAD8 tomou a medida recíproca, explicitando: "Tal como a Tunísia respeita as resoluções das Nações Unidas, também está vinculada pelas resoluções da União Africana, da qual o nosso país é um dos fundadores.".

Não vale a pena efabular, quando a realidade é tão rica de acontecimentos significativos.

Para além dos princípios a que está vinculado, e da informação que possui, o governo português está certamente atento ao sentir da opinião pública: a 6 de julho o primeiro-ministro e o MNE, João Gomes Cravinho, receberam uma Carta Aberta subscrita por 661 cidadãs e cidadãos e 16 organizações da sociedade civil, apresentando cinco solicitações concretas, com base na convicção de que Portugal pode e deve ter um papel relevante na solução que o povo saharaui espera há 47 anos.

Luísa Teotónio Pereira, membro da Associação de Amizade Portugal-Sahara Ocidental (AAPSO)

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