Perante a estreia de Ilusões Perdidas, o filme de Xavier Giannoli baseado em Honoré de Balzac (esteve na secção competitiva do último Festival de Veneza), reencontramos uma pergunta que tem tanto de objetivo como de irónico: que é feito do cinema "literário" francês?.A pergunta impõe o uso das aspas, quanto mais não seja porque a moda de rotular, acusando, a produção francesa como "dependente" da literatura é tão velha como a Nova Vaga, já lá vai mais de meio século. A esse propósito, importa não esquecer que, nos anos 60, se havia alguma unidade estética nos trabalhos de cineastas como Jean-Luc Godard, François Truffaut ou Eric Rohmer, essa unidade decorria da clara demarcação de um modo de produção tradicional que, precisamente, encarava os modelos literários como fonte de eleição dos filmes, no limite funcionando como princípio de legitimação artística..Ilusões Perdidas é um objeto suficientemente inteligente e seguro para não ceder ao esquematismo de clichés que o tempo "naturalizou", criando mesmo um modelo de espectador que, por automatismo ou ignorância, gosta de dizer que não vê cinema francês porque é muito... "literário". Aliás, para baralhar um pouco mais, convenhamos que as filmografias de Godard, Truffaut e Rohmer, ou ainda de Jacques Rivette e Claude Chabrol, serão tudo o que se quiser menos alheias ao património literário (francês e não só). Sem esquecer, já agora, que Pierrot, personagem central do Pedro, o Louco (1965), de Godard, é um homem dos livros, evocando várias vezes o autor de A Comédia Humana - a certa altura, ao telefone, questiona mesmo o seu interlocutor: "Também já se esqueceu de Balzac?...".O filme apresenta-se como uma assumida condensação do romance de Balzac, um dos mais longos da sua obra. Assim, com a colaboração do veterano Jacques Fieschi, Xavier Giannoli concebeu um argumento que está longe de esgotar as peripécias das três partes em que o livro se divide, concentrando-se na segunda: "Um grande homem da província em Paris"..Seguimos as atribulações de Lucien Chardon, jovem poeta que ambiciona escrever romances, filho de um tipógrafo de Angoulême, que se envolve com Louise de Bargeton, uma mulher da nobreza. A ameaça de escândalo leva-os a uma partida algo precipitada para Paris, movidos (sobretudo ele) pela miragem de um destino redentor na Cidade Luz... A ação decorre durante a Restauração, quando a monarquia se refaz sobre as ruínas do império napoleónico, acabando Lucien por se integrar nos meios jornalísticos, fazendo gala em assinar os seus textos como Lucien de Rubempré, usando o apelido da mãe, de ascendência nobre. Aí vai descobrindo um mundo tão vibrante quanto corrupto em que tudo se vende, incluindo as críticas de livros e espectáculos de teatro que é contratado para escrever..Esta adaptação de Balzac parece ter sido motivada pelo eventual "paralelismo" entre esse universo (des)informativo e alguns fenómenos contemporâneos, nomeadamente na Internet, de circulação de notícias falsas. Em outubro do ano passado, numa entrevista dada ao site Allociné, Benjamin Voisin, o jovem e talentoso intérprete de Lucien, dá conta dessa premissa através de uma afirmação de absoluto simplismo histórico: "Balzac previu o aparecimento das fake news.".Fazer de Balzac uma espécie de crítico "avant la lettre" de Donald Trump é um exercício pueril que não nos conduz a lado nenhum, acabando até por menosprezar o valor específico de um filme como Ilusões Perdidas. A saber: a capacidade muito clássica (e muito francesa) de fazer um retrato individual em que ecoam as convulsões políticas, morais e artísticas de toda uma época..O filme de Xavier Giannoli surpreende até pela capacidade de utilizar um instrumento tradicional das evocações históricas - a narrativa em off, através da voz de uma das personagens - de forma particularmente ágil e sugestiva. Essa voz alerta-nos para os circuitos labirínticos da experiência parisiense de Lucien, sublinhando a insolúvel contradição entre o seu idealismo romântico e os jogos de manipulação e influência em que, de início por puro deslumbramento, irá encontrar a dimensão mais íntima da sua tragédia existencial..Este é, afinal, um cinema em que, ao contrário do academismo "televisivo", os faustos de cenários e guarda-roupa (e também dos arranjos capilares de senhoras e cavalheiros!) estão longe de constituir um fim em si mesmos. Tudo isso é devidamente tratado e integrado pela notável direção fotográfica de Christophe Beaucarne, mas o essencial acontece através do labor dos atores. Além de Benjamin Voisin, que tínhamos visto em Verão de 85 (2020), de François Ozon, encontramos ainda, por exemplo, Cécile de France, no papel de Louise, e Salomé Dewaels, interpretando a jovem atriz com quem Lucien se envolve, a par de Jeanne Balibar, Gérard Depardieu e Jean-François Stévenin. Para este último, Ilusões Perdidas foi um dos derradeiros trabalhos: a rodagem decorreu no verão/outono de 2019, tendo Stévenin falecido a 27 de julho de 2021, contava 77 anos..dnot@dn.pt