Pensamos numa esfinge de frieza e Isabelle Huppert aparece de rompante. A atriz francesa é a rainha do gelo e de todas as suas nuances. No Grand Hotel de la Ópera cumprimenta-nos com um outro tipo de frieza. Na sua palete de emoções arrefecidas detemos um certo divertimento na ostentação dessa "imagem de marca". "Qual o filme de que vamos falar?", pergunta, algo baralhada. Uma confusão que faz sentido no seu caso, sobretudo porque ainda falta estrear-se em Portugal o divertimento retroSouvenir, de Bravo Defune, e, entretanto, chegaram Eva, de Benoît Jacquot, Marvin, de Anne Fontaine, e esse magnífico Madame Hyde, de Serge Bozon. A melhor atriz francesa é também a mais ocupada, mas a conversa para o Diário de Notícias é para nos dar luzes sobre a escuridão aterrorizadora de Happy End, o seu regresso à câmara de Michael Haneke, o cineasta que lhe deu papelões em A Pianista e Amor..Em Happy End, ensaio sobre cenas de uma família burguesa em dissolução em Calais, com os refugiados ao lado, Huppert interpreta uma senhora burguesa que tenta manter as aparências ao mesmo tempo que sofre de uma solidão interior lenta e impiedosa. Tem um namorado inglês que não lhe causa borboletas no estômago, problemas de comunicação com o seu filho e, pior de tudo, não sabe como lidar com a velhice do pai. E o impressionante é que a sua interpretação parece sempre estar em rima precisa com o tom gelado da realização de Haneke..Será que é uma atriz capaz de tudo? Alguma vez pensa nos seus limites? "Acho sempre que não consigo fazer certos papéis em filmes cujos argumentos são maus. Todas as semanas recebo propostas terríveis...Não é fácil aceitar um papel - há tantos fatores e condicionantes, mas mal entro num plateau para filmar penso sempre que sou capaz de fazer as coisas. Aliás, nem me ocorre que não o consiga fazer. A questão está em decidir se aceito ou não. Comigo é fazer e pronto. Tem também muito que ver com o prazer do momento. Nada é muito difícil, só o seria se tivesse algum constrangimento moral", responde de forma prática, referindo que no caso de Happy End é sempre um prazer voltar a um plateau com Haneke: "Sou sempre atraída por ele. Aceito sempre os seus convites. Este é um filme de que gosto imenso, um filme muito inteligente, embora saiba que não vai agradar a todos. Aliás, o Michael não gosta de agradar a toda a gente. Ele faz cinema para atrair as pessoas, não necessariamente para lhes agradar. Os seus filmes não são propriamente obras de entretenimento e eu percebo isso. Uma coisa é certa: Happy End vai abanar o espectador." Abanar e transtornar, dizemos nós..Acerca das unanimidades em torno de cineastas, Isabel Huppert é categórica: "Claro que o objetivo de um cineasta é que o seu filme seja visto pelo maior número possível de pessoas. Só depois disso é que pode haver esse luxo de se criar uma discussão e o filme criar divisões. Mas muito poucos cineastas têm esse luxo...".Huppert diz-nos também que está francamente surpreendida e contente por muitos estarem a ver Happy End como uma comédia. Uma comédia escura e pesadíssima, diga-se de passagem. A atriz nomeada ao Óscar sente que em França poucos terão conseguido encontrar o humor naquelas imagens de miséria humana, sobretudo porque o sentido de humor dos franceses é outro. Dê por onde der, comédia, drama ou tragédia, para ela nada muda. Isabelle Huppert é sempre diferente num tom sempre igual. Contradição ou não, esse é um dos seus segredos. A rir ou a sorrir (com ela é complicado descobrir), diz-nos "ponho sempre um pouco do meu humor em todas as minhas personagens, mesmo em Ela"..Voltamos a Madame Hyde, que não tarda está disponível no circuito virtual dos clubes de vídeo e das plataformas digitais, e tentamos perceber se ela própria se consegue rir dos seus gags físicos num filme em que interpreta uma professora do secundário que ganha poderes elétricos. "Às vezes, nesse filme, consegui rir-me com aquilo que fiz. Mas só às vezes... Há cenas com muita piada!" Nas despedidas há uma confissão. Palavras ditas com um acting elaborado: "Nunca falo com o Michael Haneke sobre o significado dos seus filmes. Deus me livre! Ele não o suportaria e expulsar-me-ia de imediato do local das filmagens. Mas Happy End é sobre muitas coisas, em especial sobre como todos nós numa família podemos estar desafinados uns com os outros e os segredos que carregamos connosco. Há camadas de mistério muito interessantes neste filme, sobretudo como é toda aquela aproximação ao tema da morte."