Pandemia e confinamento acentuaram riscos psicológicos para cuidadores informais

Após anos a lutar por um estatuto formal que lhes permitisse cuidar do outro com segurança financeira e emocional, o Governo decidiu a seu favor em 2019. Mas a pandemia permitiu novos riscos para a saúde mental dos cuidadores informais, alerta a Ordem dos Psicólogos Portugueses, fazendo recuar a luta.
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O vírus que atinge atualmente o mundo pode espalhar-se de forma democrática - mais ou menos desfavorecidos, mais velhos ou mais novos, todos podem ser infetados -, mas já provou que deixa marcas mais profundas em determinadas camadas da sociedade. É o caso dos cuidadores informais, pessoas (familiares ou amigos) que prestam diariamente cuidados a outra pessoa, dependente. Com a pandemia de covid-19 a assolar o país, e depois com o consequente confinamento obrigatório, os cuidadores viram-se numa espiral de desafios e riscos acrescidos.

Vários acorreram aos consultórios de psicologia, outros escolhem negligenciar a sua saúde mental. É preciso abrir a discussão, alerta Renata Benavente, psicóloga clínica e membro da direção da Ordem dos Psicólogos Portugueses.

"Daquilo que é a nossa experiência enquanto psicólogos que exercem funções em cuidados de saúde primário e em contexto hospitalar, fomos tendo o feedback de pessoas que prestavam cuidados a outros, quer a idosos quer pessoas com incapacidades. De facto, detetámos uma série de situações de vulnerabilidade acentuada com a pandemia e a necessidade de confinamento", conta. Por um lado, explica, "porque estas pessoas de quem cuidam poderiam estar em risco acrescido de infeção por covid-19, e esse medo, essa ansiedade, notou-se quer nos próprios quer em quem lhes presta cuidados". Por outro, porque várias das respostas de apoio complementar - como, por exemplo, os centros de dia - ficaram com a sua atividade reduzida ou mesmo suspensa. O que acresce, naturalmente, "mais cuidados por parte de quem cuidava, passando a estar 24 sobre 24 horas como cuidador".

Sendo já, em grande parte, pessoas que abdicaram da sua atividade profissional, "que poderia ser um foco de satisfação", a tensão de ter de cuidar a toda a hora "tem um impacto grande" na saúde mental destes cuidadores, alerta Renata Benavente. A psicóloga clínica diz que é preciso agir no sentido de "evitar que estas pessoas possam entrar num estado de exaustão e até deixarem de ser capazes de cuidar".

Não é novidade que já existem algumas medidas de carácter preventivo implementadas no país. Em algumas estruturas, esclarece a especialista, "encontramos grupos de ajuda mútua, por exemplo, e apoio emocional individual". "Porque estas pessoas desligam-se com muita facilidade das relações sociais, da vida lá fora, e esta é uma componente muito importante da nossa existência. Muitas vezes, fazem-no devido a um sentimento de culpa: 'Se eu o/a deixar, quem é que vai cuidar?'", lembra. Há ainda uma resposta no âmbito da Rede de Cuidados Continuados Integrados, designada Descanso do Cuidador, e que "possibilita que estas pessoas dependentes possam ser integradas em unidades de prestação de cuidados, para permitir que o cuidador tem algum tempo de descanso".

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No entanto, o caminho até ao pedido de auxílio deve partir do próprio cuidador. Renata Benavente diz ser "muito importante que as pessoas tenham capacidade de detetar em si indicadores de que possam não estar bem". Para ajudar neste processo, a Ordem dos Psicólogos Portugueses lançou recentemente, no seu site, "uma checklist para cuidadores, com alguns itens que permitem identificar sinais de alerta". São eles "alterações do sono, do apetite, sintomas de ansiedade, não se conseguir tomar decisões, haver lacunas até nos cuidados prestados, a perda de prazer em fazer atividades que eram prazerosas". De acordo com a psicóloga, "a tendência é para negligenciar estes sinais, porque sentem que não têm a quem recorrer", ou "por força de um estigma sobre a saúde mental ou psicológica" que ainda resiste no país - embora garanta que não faltam respostas de apoio. Através do SNS24, é disponibilizada uma linha de apoio de aconselhamento psicológico que põe quem liga em contacto com um psicólogo.

O percurso dos cuidadores informais em Portugal tem sido feito de lutas. Desde há vários anos que lutavam por um estatuto que os reconhecesse formalmente, para que pudessem candidatar-se a apoios financeiros. "O reconhecimento formal é muito importante", diz a especialista Renata Benavente, lembrando que "o trabalho destas pessoas ascenda a muitos milhões de euros e economiza recursos do Estado", ainda que não entre nas estatísticas financeiras. "Além disso, passa a imagem de que estas pessoas são, de facto, muito importantes e cruciais para os cuidados de muitas pessoas."

No dia 6 de setembro de 2019, o Governo deu luz verde e publicou o tão esperado estatuto, ainda que os cuidadores reclamem estar longe do resultado esperado, uma vez que o processo burocrático está a deixar vários de fora do reconhecimento. Embora a Associação Nacional dos Cuidadores Informais estime que existam mais de 800 mil cuidadores informais em Portugal, apenas 1300 pessoas pediram o reconhecimento do estatuto e só 74 o receberam. Estão, neste momento, em curso "30 projetos-piloto de atribuição de apoio financeiro", mas, remata a representante da Ordem, deve ser "uma experiência a alargar a nível nacional".

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