A adaptação pela HBO de Conspiração contra a América fez que muitos espectadores que nunca leram um dos romances de Philip Roth se tornassem fãs do escritor. O argumento voltava aos anos 1940 e punha como hipótese que o aviador Charles Lindbergh se tinha candidatado às eleições e vencido Franklin Roosevelt. O desvio da história tem outra particularidade, em vez de tudo se passar no centro da vida política norte-americana, Washington, o escritor escolhe Newark como palco da ação..Não terá sido por acaso, é que Philip Roth nasceu e cresceu em Newark, e foi essa visão de um mundo a partir da sua terra que descreveu nesse romance como Lindbergh deu asas aos ideais antissemitas que Hitler inspirava no novo presidente, com o qual chegava a assinar um pacto de cooperação. A série da HBO piscava ainda o olho à ascensão de Donald Trump e aos seus modos autoritários e xenófobos, mesmo que o romance tivesse sido publicado mais de uma década e meia antes de esse inimaginável presidente ter tomado posse..Newark não está presente apenas nesse título publicado em 2004, mas explica a grande ligação de Roth à cidade. E se já não é notícia a doação que Philip Roth fez à Biblioteca Pública de Newark de grande parte da sua biblioteca ainda em vida - Roth morreu a 22 de maio de 2018 -, bem como de uma verba de dois milhões de dólares, a pandemia, no entanto, trouxe novidades sobre esta sua oferta nos últimos dias..É que a biblioteca onde está a ser instalada a doação foi proibida de ser visitada pelo público durante a crise provocada pela covid-19 e os trabalhos de catalogação e montagem puderam avançar com mais velocidade, e já foi anunciado que será inaugurada em maio de 2021..A pandemia veio permitir que os trabalhos avançassem de modo a cumprir uma das exigências de Philip Roth ao doar livros e dinheiro para a Biblioteca Pública de Newark, a de estar aberta ao público no prazo de três anos. Nada que os responsáveis da instituição desconhecessem, pois quando os advogados do escritor os contactaram, logo se aperceberam de que havia pela frente "um trabalho gigantesco" e, ao mesmo tempo, "uma oportunidade inesperada para a biblioteca e para Newark"..Este novo espaço da Biblioteca Pública de Newark refaz a íntima ligação de Roth à instituição, onde em jovem passou muito tempo a ler os livros que não tinha em casa. Segundo um responsável da biblioteca, Philip Roth decidiu com o seu gesto agradecer a oportunidade que teve para "devorar os livros que ali estavam à disposição dos leitores na delegação do seu bairro" e, já mais crescido, na sede, onde "alargou os seus horizontes com novos autores". Mais, já escritor, nunca largou os laços com a biblioteca e "conversava muitas vezes com o especialista em história de Newark e de Nova Jérsia para esclarecer detalhes para a escrita dos seus romances"..Para Thomas Alrutz, ex-diretor da biblioteca, esta doação representa "a devolução após a morte de um empréstimo de livros feitos por uma instituição que lhe permitiu aprender e formar-se, e o seu gesto é muito importante, pois é como se esses livros estivessem de volta". Um regresso que já começara antes da doação, quando a biblioteca montou uma exposição dedicada ao escritor..Os sete mil livros que Philip Roth ofereceu à Biblioteca Pública de Newark faziam parte da sua coleção pessoal, uma enorme quantidade de volumes que estavam espalhados desde a sala de estar até ao sótão da sua casa em Connecticut e pelo apartamento de Nova Iorque. Havia ficção e não-ficção e uma grande coleção de exemplares dos livros que publicou, com exemplares das edições americanas e de outros países onde era traduzido..Segundo uma reportagem do jornal The New York Times, todos os volumes que ajudaram Roth a investigar para escrever Conspiração contra a América estão entre os que foram doados e estão depositados nas novas estantes da biblioteca como estavam na sua casa. Entre eles estão autores como Salinger, Saul Bellow, Malamud, Kafka e Bruno Schulz..Também chegaram à Biblioteca de Newark várias caixas com elementos que permitem refazer momentos da sua vida pessoal e enquanto escritor. De acordo como uma notícia no jornal El País, entre a memorabilia que Roth guardou está o álbum de formatura, mensagens de amor de colegas da escola e recortes sobre o seu desporto preferido, o basebol, assim como notícias sobre jornalistas que o inspiravam na juventude..Foi encontrado também neste álbum uma imensa coleção de pistas sobre a futura profissão de Philip Roth, pois além de todos os elementos da vida escolar contém uma espécie de diário, onde anotava os seus pensamentos - tinha 13 anos -, que permitem refazer muitos dos elementos ficcionais posteriores, como no caso do romance Pastoral Americana e do alter ego Nathan Zuckerman, da sexualidade explícita de O Complexo de Portnoy, ou mesmo a recriação inspirada nesta biblioteca no seu primeiro livro, Goodbye, Columbus e Cinco Contos. .Existem também apontamentos sobre as suas leituras, designadamente de autores hispânicos como Cervantes, Lorca, García Márquez, Vargas Llosa, Borges, Paz e Fuentes, ou franceses como Colette, russos como Dostoievski, livros sempre acompanhados de profusas notas interpretativas de como era o processo de escrita desses autores e de sublinhados ao longo das páginas. Uma atividade que gera respostas que nem sempre se encontram nos seus livros, como é o caso do sublinhado em o Trópico de Cancer, de Henry Miller, sobe o qual diz logo no início que é "o triunfo do indivíduo sobre a arte".