Como grande parte do seu tecido social e cultural, a Ucrânia e a Rússia têm estado entrelaçadas pelas suas crenças religiosas há centenas de anos. Mas a guerra do presidente Vladimir Putin, que já matou centenas e obrigou mais de 2 milhões de pessoas a fugir do país, também mudou isso. "O presidente russo é hoje Caim", diz Iov Olshansky, um padre de 33 anos do mosteiro da Ressurreição Ortodoxa Novo Athos, na cidade de Lviv. Na Bíblia, Caim, o primeiro filho de Adão e Eva, mata o seu irmão Abel. "O único caminho para a nossa Igreja é a independência", conclui..A Igreja Ortodoxa Russa foi dominante durante cerca de 300 anos na Ucrânia, incluindo durante a época soviética, quando a religião era oficialmente proscrita e os crentes praticavam em segredo. Após a queda da União Soviética, a fé ortodoxa na Ucrânia dividiu-se em três ramos: um cujos clérigos prometeram lealdade ao patriarcado de Moscovo; outro leal a um patriarcado recentemente estabelecido em Kiev; e a Igreja Ortodoxa Autocéfala Ucraniana, de menor dimensão. Mas isto mudou após a Rússia ter tomado e anexado a Crimeia da Ucrânia em 2014 e depois apoiado separatistas, que criaram duas regiões separatistas não reconhecidas no leste da Ucrânia. Desde então, esse conflito já ceifou cerca de 14 mil vidas..Quatro anos após a anexação da Crimeia, o Patriarcado Ecuménico de Constantinopla, com sede em Istambul, reconheceu a independência religiosa de Kiev, permitindo a criação de uma Igreja ucraniana unificada. A Igreja Russa perdeu muitos membros para a nova Igreja ucraniana unificada, mas continuou a ser a segunda maior confissão do país. Segundo uma sondagem em 2021, 58% dos crentes ortodoxos disseram ser membros da nova igreja unificada, em comparação com 25% que se declararam fiéis ao patriarcado de Moscovo. Mas agora padres como Olshansky apelam a uma cisão. "Todas as nossas orações são agora pelo restabelecimento da paz na Ucrânia e pela vitória do nosso exército", diz..DestaquedestaqueDepois de o patriarca Kirill ter chamado "forças do mal" aos opositores ucranianos ao regime de Putin vários padres apelaram para uma separação total..O mosteiro que Olshansky supervisiona tornou-se um centro de distribuição de ajuda às massas de pessoas que fogem dos combates no Leste. Quando falou com a AFP, um grupo de 33 adultos e crianças que ali tinham passado a noite, alguns a dormir no chão em frente ao altar, estavam a comer o pequeno-almoço de papas de aveia e sanduíches de pão com manteiga. "Estamos a tentar ajudar toda a gente", diz Olshansky, que usa vestes de clérigo e uma camisola preta com capuz. "Não perguntamos quem são". O mosteiro de Olshansky está também a ajudar as forças armadas ucranianas, recolhendo e enviando mantimentos como produtos de higiene e sacos de dormir..Olshansky não é o único a pedir uma rutura com o patriarcado de Moscovo, cujo chefe, o patriarca Kirill, chamou aos opositores russos na Ucrânia "forças do mal", em vez de condenar a invasão. Na diocese de Lviv, o nome de Kirill já não é mencionado nas liturgias e vários padres de toda a Ucrânia publicaram um vídeo apelando a uma separação total com a Igreja russa..Outro grupo de padres da região de Lviv apelou a uma reunião nacional da Igreja para declarar formalmente a sua independência de Moscovo. Esse texto foi afixado diante da Igreja de São Jorge, a sede da Igreja Ortodoxa russa em Lviv, ao lado de outra listagem das necessidades dos combatentes ucranianos..Um desses sacerdotes refugiou-se no mosteiro, depois de ter fugido da sua paróquia perto de Kiev com a sua mulher e dois filhos pequenos. "Estou cem por cento convencido de que nos devemos separar do patriarcado russo", diz a mulher, Vira Khvust. "Se nos consideram irmãos, então não se pode ter um irmão a matar o seu próprio irmão. Um bom vizinho nunca irá para a guerra contra o seu vizinho.".A Ucrânia ocidental - onde a grande maioria dos residentes pratica a fé católica grega - tem sido um bastião do nacionalismo ucraniano durante décadas. O sentimento antirrusso era elevado no país mesmo antes da anexação da Crimeia. Assim, após o Kremlin ter desencadeado a sua guerra ao país, Olshansky enfrentou abusos e ameaças de alguns funcionários eleitos locais..Para eles, a sua associação a uma igreja baseada em Moscovo significava que ele era uma figura de influência para a Rússia. Algumas igrejas ortodoxas russas no oeste do país inclusive foram revistadas, suspeitas de esconderem armas. Um grupo de jovens afixou um cartaz a insultar o patriarca de Moscovo na Igreja de São Jorge. Apesar destas tensões, Olshansky diz que não se sente ameaçado. "São apenas emoções. Eu não me zango com estas pessoas. Eu compreendo-os e perdoo-os", diz.