"Agora sim, deu, estou a falar aqui de dentro da Igreja Nossa Senhora da Consolata, na Boa Vista", diz o padre José Vicente ao DN, ao conseguir, finalmente, um lugar com rede de telemóvel numa região da capital do estado de Roraima, onde pelo menos 35 mil pessoas se abrigam, com fome, desde o fecho da ligação entre a Venezuela e o Brasil pelo regime de Nicolás Maduro.."Chegámos no dia 23 de fevereiro, via Manaus [capital do Amazonas], íamos para Ciudad Bolívar, na Venezuela, mas com o fecho da fronteira desviámos para Pacaraíma, na fronteira do lado brasileiro, e depois Boa Vista."."Logo no início os soldados não nos deixaram aproximar dos venezuelanos e ficámos a cem metros deles a rezar a eucaristia e a fazer um momento de adoração à distância", completou o clérigo.."Estava um sol quente, quente", diz o padre, da paróquia do Crato, no Ceará, que com outros sacerdotes e 28 missionários da Aliança de Misericórdia, uma entidade filantrópica com sede em São Paulo e com mais de 60 unidades espalhadas pelo Brasil e também em Portugal, Moçambique, Itália, Bélgica, Venezuela, República Dominicana e Polónia, realizando aproximadamente 700 mil atendimentos solidários ao ano, está no local na Missão Duc In Altum (traduzível do latim por "fazer-nos ao largo").."Enquanto rezávamos ainda em Pacaraíma", recorda o padre José Vicente, "uma criança veio pedir-me água mas eu não podia dar, os soldados de Maduro não deixaram, isso cortou o meu coração, não dormi de noite por causa desse episódio". "As crianças choram por fora e nós, adultos, choramos por dentro, e no entanto elas sorriem após um abraço, por um pedaço de pão."."A situação é caótica, crítica, dramática: os refugiados dormem na rua mas mesmo assim não querem voltar. Uma senhora que me quis vender café e que começou a chorar quando eu disse que não podia comprar o café dela contou-me que não quer voltar, de jeito nenhum. Ou seja, eles preferem dormir aqui, com a calçada como chão, os degraus das escadas como travesseiro e as caixas de papelão ou os sacos de lixo como cobertor, a voltar."."Uma pena que isto esteja a acontecer apenas porque uma pessoa só não tem Deus no coração, a gente ouve falar em fome na Venezuela, mas é à distância, aqui, vendo, é outra coisa, duvido que quem anda aí a comprar telemóveis de dois mil reais [cerca de 500 euros] gastasse esse dinheiro nisso se visse o que a gente vê, duvido que não doasse o dinheiro.".Os padres e missionários da Aliança de Misericórdia estão agora instalados num colégio de Boa Vista. A rotina diária passa por tentar diminuir o desespero dos venezuelanos: "Distribuímos almoços e jantares, todas as noites distribuímos 200 quentinhas [refeições ligeiras], mas não dá para todos, depois vem ainda o moço que vende pão, mas continua a não dar para todos mesmo assim."."À noite, rezamos uma missa, em espanhol, para eles, e evangelizamos na rodoviária, onde há mais refugiados. É doloroso mas é gratificante também este trabalho." O padre José Vicente não tem noção exata de quantos refugiados estão naquela região fronteiriça. "Falam em 35 mil pessoas, registadas pela assistência social, fora as que não se registaram...".Uma das 28 missionárias da Missão Duc In Altum, Maria Clara Bianchetti, também falou ao DN. Ela foi a autora de uma foto que correu as redes sociais no Brasil da pequena Nelcimar, de 4 anos, a sorrir entre lágrimas, ao receber um pão. "Ontem, este pão foi dado por mim a esta criança e ela chorou quando deu a primeira dentada. O meu coração muito mais. Do povo venezuelano, tudo lhes foi tirado. A dor física é dolorosa, mas a dor da alma nos machuca muito e dói, profundamente, muito mais", escreveu Clara no site da Aliança de Misericórdia..Segundo dados recentes do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), existem 3,4 milhões de refugiados venezuelanos no mundo, dos quais 96 mil no Brasil.."Mesmo com o encerramento da fronteira, vamos continuar a ajudar os venezuelanos que já fizeram a travessia para o Brasil e os que ainda vão conseguir", disse o porta-voz do ACNUR, Luiz Fernando Godinho. A agência da ONU doa produtos alimentícios, colchões, produtos de higiene, serviço médico, psicológico e abrigo definitivo no Brasil. Na fronteira entre Roraima e a Venezuela, o ACNUR tem 13 abrigos: um na cidade de Pacaraima, exclusivo para os indígenas, e outros 12 em Boa Vista, com cerca de 70 voluntários.