O pacto sobre as migrações das Nações Unidas, negociado a partir da crise migratória europeia de 2015, está a causar divisões dentro da própria União Europeia, apesar de não ser juridicamente vinculativo. Pelo menos sete países vão boicotar a cimeira destas segunda e terça-feira em Marraquexe (Marrocos), tendo o pacto já levado ao fim da coligação de governo na Bélgica e à demissão do chefe da diplomacia eslovaco..O Pacto Global para uma Migração Segura, Ordenada e Regular (GCM, na sigla em inglês), pretende ser o primeiro quadro cooperativo internacional sobre as migrações - movimentos populacionais que compreendem qualquer deslocação de pessoas, independentemente da extensão, da composição ou das causas. Inclui a migração de refugiados, pessoas deslocadas, pessoas desenraizadas e migrantes económicos..O objetivo é que seja um documento abrangente para melhor gerir a migração internacional, enfrentar os seus desafios e fortalecer os direitos dos migrantes, contribuindo para o desenvolvimento sustentável..Em julho, o documento de 34 páginas recebeu o apoio de 192 dos 193 países da ONU. A exceção: os EUA. A Administração do presidente Donald Trump já tinha alegado antes que os objetivos do acordo são "incompatíveis com as leis dos EUA, a política e interesses do povo americano", lembrando que "as decisões sobre a segurança nas fronteiras, sobre quem é legalmente autorizado a residir ou a obter a cidadania estão entre as mais importantes decisões que um país soberano pode fazer"..Uma mensagem que tem conseguido passar com sucesso para outros países: apesar das tensões, mais de cem países são esperados na segunda-feira e terça-feira, em Marraquexe, Marrocos, para endossar formalmente o texto, antes da votação sobre uma resolução de ratificação à Assembleia Geral da ONU prevista para 19 de dezembro, em Nova Iorque..Fora da União Europeia, Israel e Austrália também rejeitaram o pacto..Divisões na União Europeia.A poucos dias da cimeira de Marraquexe, sete países da União Europeia (Hungria, Áustria, Polónia, República Checa, Eslováquia, Bulgária e Letónia) anunciaram que não iriam enviar representantes a Marrocos para validar o documento. A Áustria, recorde-se, ocupa atualmente a presidência rotativa da União Europeia..A Itália, cujo governo inclui um partido de extrema-direita, também "congelou" a assinatura, remetendo o caso a um voto do Parlamento italiano. Mas o pacto também trouxe problemas na Dinamarca e na Holanda, além de debate interno na Alemanha e na Estónia, com os partidos de extrema-direita do continente a expressarem a sua oposição ao acordo. Na Croácia, o pacto é apoiado pelo governo, mas rejeitado pela presidente Kolinda Grabar-Kitarovic..Na Bélgica, o pacto levou à saída dos nacionalistas flamengos do N-VA do governo liderado pelo liberal Charles Michel. No sábado à noite, o presidente do partido, Bart De Wever, lançou um ultimato ao primeiro-ministro, indicando que a formação sairia do governo se este se deslocasse a Marraquexe para aprovar em nome da Bélgica o Pacto Global da ONU.."Se já não temos voz neste governo, não vale a pena continuar", declarou De Wever. A N-VA era o único dos quatro partidos da coligação governamental que se opunha ao texto da ONU. Os ministros nacionalistas flamengos demitiram-se neste domingo e Michel passará a governar em minoria, a cinco meses das eleições legislativas previstas para o final de maio..Na Eslováquia, foi o chefe da diplomacia que se demitiu, depois de o primeiro-ministro, Peter Pellegrini, dizer que o governo "nunca" iria aceitar o pacto, já que este apresenta a migração como algo positivo. A decisão do Parlamento de rejeitar o pacto levou Miroslav Lajcak a demitir-se, em protesto. O chefe da diplomacia era o presidente da Assembleia Geral da ONU quando o acordo de migração foi adotado..Posição portuguesa.Portugal esteve "desde a primeira hora" envolvido nas negociações do pacto global para a migração promovido pela ONU, revê-se no documento e irá "cumprir" a sua palavra, afirmou à Lusa o chefe da diplomacia portuguesa, Augusto Santos Silva.."Portugal esteve desde a primeira hora envolvido nas negociações do pacto global das migrações que se iniciaram nas Nações Unidas", disse o ministro dos Negócios Estrangeiros. Recordando que Portugal subscreveu, em setembro de 2016, o documento que deu o ponto de partida para as negociações do pacto, a chamada "Declaração de Nova Iorque", e participou nos processos negociais de vários meses que culminaram no texto final do documento, aprovado em julho passado, Santos Silva frisou que o país "cumpre naturalmente" a sua palavra..Portugal "revê-se inteiramente no texto a que se chegou e subscreverá o pacto", prosseguiu o representante..Em relação às divisões, Santos Silva diz respeitar a decisão dos parceiros europeus, mas lamenta que os parceiros a tenham tomado, depois de terem participado nas negociações. "Isso não honra a palavra dos europeus, prejudica a imagem dos europeus e sobretudo mostra o medo de alguns governos perante a sua extrema-direita que não é bom augúrio para os valores da democracia europeia", frisou, dizendo que a situação reflete "uma mistura de ignorância, preconceito" e de "diferenças ideológicas".."Entre aqueles que não querem assinar o pacto diz-se muito que este pacto consagra um novo direito que seria o direito a imigrar. Não é isso que nós dizemos. O que nós dizemos, e devemos dizê-lo, é que os migrantes, mesmo em situação irregular, continuam a ser pessoas, com a dignidade própria das pessoas e com direitos", afirmou Santos Silva..O que é afinal o pacto global?.É o resultado de um processo abrangente de consultas e de negociações entre os Estados membros das Nações Unidas que começou com a assinatura da "Declaração de Nova Iorque para Refugiados e Migrantes" em 2016, texto que foi na altura adotado, por unanimidade, na Assembleia Geral da ONU..Dez princípios, como a universalidade dos direitos humanos ou a soberania nacional, orientam a aplicação do documento. O texto traça 23 objetivos concretos para uma migração segura, ordenada e regular que podem servir como pontos de referência para os Estados quando estes aplicarem as respetivas políticas migratórias nacionais..Entre esses 23 objetivos está, de forma compacta, a ideia de mitigar os fatores que impedem as pessoas de construir e ter meios de subsistência nos países de origem; reduzir os riscos e as vulnerabilidades que os migrantes enfrentam nas diferentes etapas da migração; abordar as preocupações dos Estados e das comunidades e reconhecer que as sociedades estão a passar por mudanças democráticas, económicas, sociais e ambientais; e criar condições que permitam a todos os migrantes enriquecer as sociedades através das suas capacidades humanas, económica e sociais, e facilitar a sua contribuição para o desenvolvimento a nível local, nacional, regional e global..Acontece que o Pacto Global para a Migração não é juridicamente vinculativo, podendo ser interpretado como uma declaração de intenções. Nenhuma obrigação legal sobrepõe as leis nacionais ou internacionais dos Estados participantes. O documento parte do pressuposto de que existe uma vontade política internacional para melhorar a gestão da migração.