Era John Cassavetes quem dizia que os filmes deviam abanar os espetadores e fazê-los sair das "verdades manufaturadas e rápidas" a que o mainstream os habituou. De certa maneira, continuamos a ser esses espetadores acomodados ao que chega semanalmente às salas comerciais, pejadas de produções americanas com verdades manufaturadas, ignorando o muito que se faz fora da órbita de Hollywood. Uma lacuna da distribuição (da qual nem sequer se tem consciência) que o ciclo Outsiders vem preencher. "A sensação que o público fora dos Estados Unidos tem é que vê tudo o que há para ver. O nosso mercado está tão dominado pelo cinema americano que passa a ideia de que o que não vemos é o cinema do resto do mundo. E isso não é de todo verdade", sublinha o programador do ciclo, Carlos Nogueira..Em conversa com o DN, esclareceu que o que se vai ver por estes dias na sala lisboeta do São Jorge, apresentado pela Fundação Luso-Americana, não é sequer o tipo de produções indie que costumam fazer parte da paisagem, como os oscarizados Moonlight e Nomadland, com máquinas de distribuição por trás, ou os filmes de Tarantino ("um cineasta independente que trabalha com o Brad Pitt e com o Leonardo DiCaprio soa-nos um pouco estranho"). Apesar de a noção de cinema independente ser "vaga e imprecisa", é possível distinguir estes outsiders por um aspeto em particular: são filmes de baixíssimo orçamento, realizados ao longo da última década e meia. Veja-se o título de abertura, Tiny Furniture (hoje, 21h30), de Lena Dunham, que com 60 mil dólares fez um autorretrato de antecipação do quadro maior de Girls (HBO), a sua popular série centrada na desordem emocional da juventude nova-iorquina, ou Nights and Weekends (dia 6, 21h30), que custou 15 mil dólares. "São filmes feitos com a conta bancária dos realizadores, e com uma meia dúzia de amigos filmados em casa, sem grande aparato de iluminação, com uma câmara emprestada. Isto é cinema independente na mais verdadeira essência da expressão", nota o curador..Nights and Weekends (2008), realizado e interpretado por uma então desconhecida Greta Gerwig e Joe Swanberg - que acompanha as dores de uma relação amorosa à distância -, é aliás o filme protótipo de um subgénero alternativo, o mumblecore, e um dos que melhor ilustram a "verdade da cena" segundo Cassavetes, grande influência desta geração de independentes, como refere Nogueira: "Cassavetes tinha a fama de estragar alguns dos seus filmes porque destruía o bonitinho para conseguir a verdade, conseguir que os atores suassem como pessoas reais. Aqui o método não é exatamente o mesmo, mas o objetivo é esse. No processo de Swanberg há uma história, mas nem sempre parece haver um guião escrito. Há tópicos e depois ele permite que os atores digam as suas próprias palavras. Não é um exercício de improvisação, é adaptar a cena aos seus atores, que se confundem com as personagens. E em Nights and Weekends eles são exímios. A Greta Gerwig estava a começar a demonstrar que era uma das grandes atrizes saídas deste grupo, e o Swanberg é também um excelente ator, que entra em muitos filmes de outros." Joe Swanberg vai marcar presença em Lisboa para dar uma masterclass e apresentar também o seu All the Light in the Sky (dia 7, 21h30)..Por sua vez, a referência a Gerwig, atriz e realizadora hoje de renome, leva-nos ao caso da nova estrela Chloe Zhao, cujo filme The Rider (dia 8, 21h30), de 2017, anterior ao oscarizado Nomadland, é a escolha brilhante para o encerramento da mostra. Um filme que retrata, através de um cowboy de rodeo, a morte dos sonhos numa América rural, ao mesmo tempo que revela o estado puro de uma ideia de cinema, "aquela fronteira muito ténue entre ficção e não ficção, os atores como versões ficcionadas de si próprios", palavras do programador. Para quem acha que conhece Zhao pelo filme do Óscar ou pelo seu mais recente espécime de super-heróis, Eternals, tem aqui a oportunidade de contemplar o ponto de fuga da sua sensibilidade..Falando em não-ficção, o registo documental envolve outros momentos altos do ciclo. Destaque para Tchoupitoulas (dia 5, 19h00), de Bill Ross e Turner Ross, que visita a noite de Nova Orleães seguindo três irmãos adolescentes negros, numa mistura de linguagem psicadélica com visão social. E destaque também para Actress (dia 1, 19h00), de Robert Greene, um surpreendente gesto de câmara que se volta para uma atriz - Brandy Burre, da série The Wire - observando-a enquanto mulher que largou a carreira, presa pelas obrigações da maternidade, a viver numa zona de tensão alimentada pelo desejo de representar; Greene transforma isto numa narrativa real que dança com a ficção, ou não fosse a primeira imagem a atriz de costas, vestida de vermelho, com uma sugestão de melodrama na postura doméstica diante do lava-louça..Entre os ilustres realizadores desconhecidos por cá, recomendamos vivamente a primeira obra de Patrick Wang, In the Family (dia 3, 21h30), que data de 2011, um filme maduro na abordagem de uma questão legal em torno da parentalidade gay, mediante a morte de um dos pais. Um olhar muito sereno e enxuto que entra pelas fendas da solidão, assentando ora nos silêncios ora no "prazer da palavra" - nesse aspeto, repara Carlos Nogueira, dentro da lógica de certos autores de Hollywood, como Joseph L. Mankiewicz -, e com "uma atitude, que pode parecer ingénua, de crença no sistema americano, mas que é uma crença muito mais profunda no ser humano, que vem de raízes culturais ancestrais do cineasta.".De resto, é impossível ignorar a sessão de curtas-metragens dos famosos irmãos Safdie (dia 4, 21h30), "pequenos retratos de Nova Iorque" que percorrem toda a sua carreira, e The Mend (dia 5, 21h30), de John Magary, título de 2014 que entrou em várias listas dos melhores do ano, um amargo reencontro de irmãos que motiva uma análise à fratura interior da masculinidade moderna. Num total de 14 longas-metragens e oito curtas, estas são apenas algumas luzes de orientação dentro de um ciclo que coloca no radar o cinema americano da margem, até agora aí deixado..dnot@dn.pt