"Sonhei na noite passada que voltara a Manderley." A célebre frase que inicia o romance de Daphne du Maurier - mais forte do que o tradicional "era uma vez" - escuta-se agora em 2020, lida por Lily James, numa nova adaptação de Rebecca. É a mesma frase que, na voz de Joan Fontaine, conferia uma entrada encantatória e sombria ao Rebecca (1940) de Hitchcock..Neste, a câmara atravessa um portão, vagueia por entre o nevoeiro que cobre a vegetação selvagem de um terreno abandonado, até revelar na bruma uma imponente casa em ruínas. "Manderley, Manderley...", suspira Fontaine, como se falasse de um ser humano. E a verdade é que, feita de pedra, aqui está uma das personagens principais do filme, e do livro, senão mesmo a principal..Rebecca é a história de uma jovem tímida, dama de companhia de uma velha socialite que, numa das suas viagens com a patroa, cruza o destino com Maxim de Winter, o dono da referida Manderley, homem por quem se vai apaixonar. Vivem dias felizes debaixo do sol de Monte Carlo, apesar de uma certa escuridão que parece atravessar este homem rico e viúvo, casam-se e ele leva-a para esse lugar mítico, "mais do que uma casa", diz, onde a nossa protagonista viverá assombrada pelo fantasma da mulher do título: Rebecca, a anterior Mrs. de Winter, que tudo sugere ter sido uma criatura celestial na terra..A letra R está por todo o lado, ouve-se falar dela com discreta veneração, e a sinistra governanta, Mrs. Danvers, encarrega-se de proteger a sua memória naquela casa, nomeadamente mantendo o quarto da morta com a mesma disposição de objetos que teria se fosse habitado. Até o cão guarda a entrada do quarto como se a dona ainda ali estivesse....Até há poucos dias, a única adaptação ao cinema que existia do romance de Du Maurier era a de Alfred Hitchcock, um dos seus títulos mais populares e que parecia intocável. Foi o primeiro filme que o britânico realizou na chegada a Hollywood - logo depois de ter assinado outra adaptação de um livro da autora conterrânea, A Pousada da Jamaica (1939) -, agora sob a jurisdição de um produtor cheio de si. Falamos de David O. Selznick, o homem por detrás de E tudo o Vento Levou, que se gabava de ter produzido adaptações de clássicos com muito sucesso por não permitir que os realizadores tomassem liberdades com os elementos da obra original..Assim, Hitchcock teria com ele uma das mais complexas relações criativas, que ficou registada num famoso (e delicioso) memorando em que Selznick se diz chocado diante da primeira versão do argumento, que considerou distorcida e abandalhada. "Os milhões de pessoas que leram o livro e o adoram poderiam muito bem atacar-nos violentamente pelas profanações que estão indicadas no seu tratamento da história; mas para além do sentimento desses milhões de leitores, eu nunca serei capaz de entender porque é que os realizadores insistem em deitar fora algo de atração comprovada para substituir com coisas da sua própria criação. É uma forma de ego que valeu a Hollywood, durante muitos anos, a ira do mundo, e, francamente, estou surpreendido por descobrir que a doença se espalhou por Inglaterra.".Palavras impiedosas a que acrescentaria a sua ideia de adaptação: "Não retenho de maneira nenhuma a teoria de que a diferença de suporte implica a diferença da narrativa, ou mesmo a diferença nas cenas. Na minha opinião, a única coisa justificada pela transposição é a diferença do modo como uma cena é contada." E conclui o raciocínio escrevendo: "Eu quero produzir Rebecca, e não um argumento original baseado em Rebecca.".Toda a aspereza contida neste sermão de pai tirano funcionou, apesar de tudo, a favor de Hitchcock, que, ao ver-se obrigado a seguir as diretrizes do produtor, sofisticou ainda mais o seu próprio método de planificação visual - algo que foi sempre prioritário no modo de trabalho do realizador. Resultado prático? O Rebecca de 1940 é uma produção romanesca claramente à maneira de Selznick, com a densidade psicológica das personagens fiel à fonte literária, mas com uma atmosfera, linguagem de planos e abordagem do tema da "culpa" como só Hitchcock podia ter captado; desde logo tentando contornar o Código Hays (normas morais aplicadas aos filmes americanos entre 1930 e 1968) que não permitia conservar a violência implícita no final do livro. E, no entanto, essa violência não deixa de passar através do gesto da câmara... É sabido que Hitchcock tinha um jeito especial para insinuar o lado obscuro das coisas..O Óscar de melhor filme, arrecadado por um orgulhoso David O. Selznick, as nomeações dos atores Laurence Olivier (como Maxim de Winter), Joan Fontaine e Judith Anderson (esta, soberba na pele da governanta Mrs. Danvers), mais a popularidade alcançada, carimbaram Rebecca como obra-prima irrepetível. E, porém, eis que chega uma nova versão assinada pelo inglês Ben Wheatley - um realizador que passa mais ou menos despercebido -, com a convicção comercial de que é possível regressar a Manderley 80 anos depois..O que fica da experiência de ver este novo Rebecca é o sentimento de uma revisitação postiça, com Lily James, a atriz que interpretara a Cinderela no live action da Disney, à procura da expressão certa do medo num filme despido de sugestão, subtilezas ou ambiguidade. Na versão de Hitchcock, esta jovem protagonista e narradora - de quem nunca se sabe o nome - começa por encontrar Maxim de Winter num precipício, assumindo que este se vai suicidar. Doravante, haverá sempre um ligeiro mau pressentimento a envolver o rosto de Laurence Olivier, uma luz e sombra que, no novo filme, nunca vemos pairar verdadeiramente sobre o Maxim de Winter de Armie Hammer, que, além de não parecer muito interessado em suicidar-se, dá ares de estar apenas chateado com alguma coisa..Uma vez em Manderley, deparámos com Kristin Scott Thomas em modo "madrasta da Disney", num esforço quase válido para igualar a impassível Mrs. Danvers de Judith Anderson, uma personagem com momentos de crueldade antológica no filme de Hitchcock, desde a visita guiada dentro do quarto-museu de Rebecca ao plano mais conhecido de todos, em que esta incita uma desesperada Joan Fontaine a atirar-se da janela. Enfim, ambas as cenas estão reproduzidas no filme de Wheatley, mas não há fantasmagoria ou vertigem que impregne nenhuma delas como se vê acontecer, por exemplo, naquele instante em que Hitchcock dá um relance picado sobre o chão de neblina debaixo do parapeito da janela, a fazer-nos sentir a tontura (por alguma razão foi ele quem realizou Vertigo e pôs James Stewart a ter medo das alturas)..O que há de novo? Vejamos, Maxim de Winter é sonâmbulo, mas isso não acrescenta impacto nenhum à história; há uma antecâmara de espelhos no quarto de Rebecca, a indicar alguma utilidade futura, mas não se justifica para além da estética; e Rebecca, figura ausente por excelência, ganha aqui a forma de uma recorrente miragem. Tudo acessórios narrativos que não oferecem qualquer profundidade e, no caso da imagem ilusória de Rebecca, revela mesmo uma inaptidão moderna para a arte da ausência (tão cinematográfica!), essa mistura fabulosa de vazio e omnipresença que Hitchcock inscreveu em Joan Fontaine: ela é a mulher sem nome, atormentada pelo nome de outra mulher de imagem oculta..Talvez o contraste gritante entre os dois filmes, para lá do preto e branco do primeiro e das cores do segundo, se possa ilustrar com uma pequeníssima variação do argumento: se em Hitchcock a heroína evoca o pai dizendo que este adorava pintar a mesma árvore vezes sem conta, na nova versão ela refere o pai como alguém que adorava carros... Convenhamos que são duas sensibilidades um tanto distintas, e é impossível não fazer o paralelismo "autoral": Wheatley está mais interessado num motor narrativo com capô vistoso do que na pincelada artística que envolve o espectador numa atmosfera gótica e romântica..Voltar a Manderley foi frustrante. Podem dizer que os clássicos não são sagrados, mas (volte-se então a este) há casas cuja ruína silenciosa não deve ser perturbada. Nem por ratos.