De acordo com um anúncio recente, estes são os elementos de um "mau dia" na vida do melhor jogador do mundo. O melhor jogador do mundo acorda sozinho numa cama amortalhada em dois hectares de cetim, e veste um robe de pele de leopardo. O melhor jogador do mundo consulta o telemóvel para constatar que a sua última fotografia no Instagram tem zero likes. O melhor jogador do mundo derruba acidentalmente uma estátua, deixa queimar algumas torradas e, depois de passear pelo jardim da sua mansão, cai dentro da sua própria piscina..Mas de repente o dia muda, e deixa de ser mau. O dia muda quando o melhor jogador do mundo vai à casa de banho e se borrifa com algumas gotas de perfume - um perfume da marca do melhor jogador do mundo. Refrescante, confortável e não convencional, CR7 Play It Cool tem como notas aromáticas dominantes uma aliança frutada cintilante de tangerina e bergamota, delicadamente adocicada com pera, anunciando uma combinação de lavanda, cardamomo e odores marinhos, subtilmente aquecidos com almíscar e madeira de âmbar. É um perfume casual e desportivo, concebido para homens dinâmicos, mesmo aqueles que não têm a felicidade adicional de ser o melhor jogador do mundo. No espelho do melhor jogador do mundo, vê-se o resultado prático da aplicação do produto: um sorriso confiante do melhor jogador do mundo, no início de mais um bom dia igual aos outros..Atletas com reputações globais não são contratados por marcas para fazerem anúncios porque são excelentes actores; são contratados por serem atletas com reputações globais. Neste caso em concreto, a marca Cristiano Ronaldo contratou o atleta Cristiano Ronaldo para interpretar o papel de Cristiano Ronaldo num anúncio ao novo perfume de Cristiano Ronaldo. E a coisa correu bem, dentro do género. A estranheza específica de anúncios semelhantes decorre muitas vezes não de o atleta em questão parecer pouco convincente a elogiar o produto que elogia, mas de parecer pouco convincente a habitar a realidade artificial em que o anúncio o inseriu. Mas a ideia de Cristiano Ronaldo a vestir um robe de pele de leopardo ao acordar, ou a sorrir enquanto se olha ao espelho, é uma ideia que recebe o nosso assentimento imediato. É o tipo de coisa que é extremamente fácil imaginar Cristiano Ronaldo a fazer..Imaginar Cristiano Ronaldo a fazer outras coisas que não jogar futebol (e levantar troféus, e pulverizar recordes) é uma tarefa a que várias pessoas começam a dedicar-se com alguma urgência, e uma dessas pessoas é Cristiano Ronaldo. Numa entrevista ao portal inglês SportBible, que o acompanhou na sessão de lançamento do novo perfume, confessou: "Nos últimos anos comecei a pensar no processo de me ver fora do futebol, portanto, quem sabe o que vai acontecer daqui a um ano ou dois?" A frase emancipou-se rapidamente do seu contexto e foi repescada para título por quase todas as publicações que reproduziram a notícia original. Por razões compreensíveis: que mais não seja, representa uma drástica revisão das estimativas de alguém que, até há poucos meses, assegurava confiantemente ter condições para jogar até depois dos 40 anos..Por enquanto só tem 34 e, embora os artigos a garantir que "testes científicos demonstraram" que tem um corpo de 23 continuem a aparecer, o confronto com os atritos e as fricções do calendário escalou, e já estivemos mais longe do momento inevitável em que o seu futebol será estritamente reduzido a compilações no YouTube ao som de tecno alemão. Cristiano chegou ao estágio da vida em que a gravidade começa a mostrar interesse, em que a gravidade começa a olhar para o corpo e a fazer perguntas. (Perguntas como: o que é que acontece se eu fizer isto? O que é que acontece se eu tocar aqui?) A luta contra a gravidade foi o fulcro da sua primeira reinvenção enquanto jogador - a que coordenou a segunda e mais espalhafatosa fase da sua carreira, entre 2006 e 2013, digamos, na qual se transformou num ariete todo-o-terreno, em constante perturbação vertical. O combate de qualquer velocista é sempre contra a força da gravidade, mas no caso específico de Ronaldo o risco não era o de cair, mas, sim, de levantar voo. Corria como se o seu centro de gravidade estivesse localizado nos músculos do pescoço. Até o controlo de bola parecia precário, provisório (característica cujo efeito estético será talvez a que melhor contribuiu para a indefinição do seu estatuto consensual entre os "maiores de sempre"). Para criar a voragem capaz de engolir recordes, teve de criar um estilo que devia menos aos pressupostos da beleza do que às operações da lógica. E durante seis ou sete épocas consecutivas, foi assim que tratou o futebol: como um conjunto de equações para serem resolvidas por um tanque de guerra. Tudo parecia um acto de desespero. Mas o desespero raramente triunfa; e Ronaldo triunfou vezes suficientes para fazer parecer a leitura do "desespero" algo pateta. Numa vinheta de Buster Keaton, Messi seria Buster Keaton: evadindo com elegante despreocupação as violências colossais e inconscientes de avalanches, descarrilamentos, manadas de búfalos. Ronaldo seria essas avalanches, esses descarrilamentos, essas manadas de búfalos, arrasando triunfantemente cenários inteiros à sua passagem..A ânsia de dominar cada jogo em que participava parecia por vezes implicá-lo numa tarefa titânica, mas paralela: sem qualquer relação directa com o mesmo, até ao momento de fazer a contabilidade. Esse Ronaldo 2.0 era um negócio de volume: margens pequenas compensadas pela inundação constante do mercado. O princípio operativo era o de que 90 minutos são o contexto ideal para falhar vinte vezes desde que se acerte cinco, especialmente quando mais ninguém tem condições para o tentar..A sua segunda reinvenção tornou-o mais visível dentro do campo como uma inteligência letal em movimento do que como um corpo em constante périplo devastador, seguido por holofotes. No seu auge, Ronaldo fornecia um foco de pânico capaz de absolver todos os colegas do escrutínio habitual, permitindo que os talentos específicos de jogadores como Scholes, Carrick, Özil ou Modric subsistissem nas margens camufladas da sua fulgurante omnipresença; mais tarde aprendeu a subordinar-se à burocracias inerentes do meio-campo, passando a assumir um papel mais cerimonial, e adoptando uma economia cinética, em que cada espasmo tenta ser um ingrediente corrosivo. A redução do número de intervenções obrigou cada uma a ser decisiva; o fio da navalha tornou-se mais exíguo..Funcionou, e continua a funcionar, e a sua encarnação mais recente (desde que foi para Itália) parece menos uma terceira reinvenção do que um modelo à escala do estilo anterior. Mas o volume decresceu, o maximalismo estatístico baixou para níveis humanos, e nesse intervalo reside a diferença entre uma anomalia de proporções históricas e aquilo que é "apenas" um avançado muito bom..É possível que "avançado muito bom" seja um estatuto para o qual nada na vida de Ronaldo durante os últimos 15 anos o tenha preparado. Os grandes jogadores parecem extravasar os limites do desporto que praticam. A questão é que a maneira específica como Ronaldo transcendeu esses limites pareceu dilatar apenas o seu próprio estatuto - é como se cada acto equivalesse a mandar a sua reputação ao ginásio com o propósito expresso de lhe aumentar os deltóides. A tragédia de ficar ocasionalmente em segundo lugar para outra anomalia histórica nunca pareceu incompatível com aquela supernova de autoconfiança - a petulante auto-estima de quem se sente capaz de aniquilar tribos inteiras sempre que desdobra o colarinho do seu pólo cor-de-rosa. O verdadeiro desafio seria sempre o momento em que a aura de supremacia que sustenta essa autoconfiança começasse a ser incompatível com a soma dos números disponíveis. A ideia de continuar a ser um "avançado muito bom" durante cinco ou seis anos pode ter-lhe parecido aceitável no passado recente. A revisão em baixa para "um ou dois anos" sugere que a estimativa terá sido optimista..Ronaldo nunca agiu como alguém que habitava confortavelmente o seu talento, mas como alguém que o inventou e foi sempre forçado a supervisioná-lo nervosamente. Talvez o apelo do "mundo empresarial" seja esse: outra arena onde o sucesso se mede em propriedades quantificáveis, e onde a retórica do "trabalho" e da "dedicação" também é moeda corrente. E o "mundo empresarial", aparentemente, é mesmo o que se segue. Naquilo que foi descrito como uma "conversa informal" com jornalistas quando do lançamento oficial de Play It Cool, Ronaldo explicou o conceito por trás da nova fragrância (é a segunda da linha): "Lorem ipsum dolor sit amet, consectetur adipiscing elit, sed do eiusmod tempor incididunt ut labore et dolore magna aliqua." Na verdade, não foi isso que Cristiano Ronaldo disse durante a "conversa informal" com jornalistas. O que disse foi isto: "Sinto realmente que esta fragrância pode transformar uma pessoa. Uma boa fragrância dá-nos a confiança para sermos a melhor versão de nós próprios e era essa sensação que eu queria engarrafar com o novo CR7 Play It Cool." No fundo é outra categoria de lorem ipsum: uma mistura entre banalidade publicitária e o credo neocalvinista que é a base da mitologia consolidada de CR7: o poder da vontade. O credo é agora matéria de fé secular e Cristiano Ronaldo, tal como o entendemos, é uma consequência dessa fé, tanto como a sua causa. Quando vemos futebol aos níveis superiores - e com uma atenção, digamos assim, supraclubística -, aquilo que procuramos num jogo não é apenas um teste objectivo de superioridade, mas uma construção estética autónoma e também uma história legível e fácil de articular; e as histórias mais fáceis de articular são (há vários milénios) aquelas em que carácter é destino. Na teologia do desporto moderno, o seu papel é o de um santo que pintou o seu próprio vitral. As suas obras acumuladas, com uma escala, dimensão e significado tão colossais que criam o seu próprio contexto, absorveram o autor, tornando-o não propriamente irreal (do modo etéreo que associamos a outra estirpe de grandes atletas), mas vagamente artificial. A propaganda torna-se tautológica e autocumprida, como se um livro de auto-ajuda tivesse ganho consciência e conquistado a galáxia..Mesmo com o lastro de privilégio material que arrasta, há sempre algo penoso na reforma precoce de grandes atletas: a irrelevante ubiquidade do talento desvanecido, condenada a percorrer o mundo dos sorteios da FIFA, das homenagens póstumas, das inaugurações de lojas, dos semi-secretos anúncios japoneses. Uma versão modificada deste destino aguarda inevitavelmente o Cristiano Ronaldo pós-futebol. Mas se nunca foi fácil imaginá-lo a terminar a carreira num Beira-Mar ou num Nacional, e ainda menos fácil imaginá-lo a ser treinador e a explicar a um balneário de criaturas menos importantes que os ia organizar em 4-3-3, há qualquer coisa naquele anúncio e no seu discurso recente que se mantém fiel à personalidade que inventou, dentro e fora de campo. Cristiano Ronaldo a participar em reuniões, a assinar documentos, a ouvir atentamente enquanto uma equipa de marketing lhe sugere novas combinações de lavanda, bergamota e cardamomo. Cristiano Ronaldo, com o seu robe de pele de leopardo, a atender um telefonema matutino para ser informado de que a sua nova fragrância ganhou um Frasco de Ouro nos Dubai Awards. Cristiano Ronaldo a ter um bom dia, diferente dos outros, e longe dos nossos..Escreve de acordo com a antiga ortografia.
De acordo com um anúncio recente, estes são os elementos de um "mau dia" na vida do melhor jogador do mundo. O melhor jogador do mundo acorda sozinho numa cama amortalhada em dois hectares de cetim, e veste um robe de pele de leopardo. O melhor jogador do mundo consulta o telemóvel para constatar que a sua última fotografia no Instagram tem zero likes. O melhor jogador do mundo derruba acidentalmente uma estátua, deixa queimar algumas torradas e, depois de passear pelo jardim da sua mansão, cai dentro da sua própria piscina..Mas de repente o dia muda, e deixa de ser mau. O dia muda quando o melhor jogador do mundo vai à casa de banho e se borrifa com algumas gotas de perfume - um perfume da marca do melhor jogador do mundo. Refrescante, confortável e não convencional, CR7 Play It Cool tem como notas aromáticas dominantes uma aliança frutada cintilante de tangerina e bergamota, delicadamente adocicada com pera, anunciando uma combinação de lavanda, cardamomo e odores marinhos, subtilmente aquecidos com almíscar e madeira de âmbar. É um perfume casual e desportivo, concebido para homens dinâmicos, mesmo aqueles que não têm a felicidade adicional de ser o melhor jogador do mundo. No espelho do melhor jogador do mundo, vê-se o resultado prático da aplicação do produto: um sorriso confiante do melhor jogador do mundo, no início de mais um bom dia igual aos outros..Atletas com reputações globais não são contratados por marcas para fazerem anúncios porque são excelentes actores; são contratados por serem atletas com reputações globais. Neste caso em concreto, a marca Cristiano Ronaldo contratou o atleta Cristiano Ronaldo para interpretar o papel de Cristiano Ronaldo num anúncio ao novo perfume de Cristiano Ronaldo. E a coisa correu bem, dentro do género. A estranheza específica de anúncios semelhantes decorre muitas vezes não de o atleta em questão parecer pouco convincente a elogiar o produto que elogia, mas de parecer pouco convincente a habitar a realidade artificial em que o anúncio o inseriu. Mas a ideia de Cristiano Ronaldo a vestir um robe de pele de leopardo ao acordar, ou a sorrir enquanto se olha ao espelho, é uma ideia que recebe o nosso assentimento imediato. É o tipo de coisa que é extremamente fácil imaginar Cristiano Ronaldo a fazer..Imaginar Cristiano Ronaldo a fazer outras coisas que não jogar futebol (e levantar troféus, e pulverizar recordes) é uma tarefa a que várias pessoas começam a dedicar-se com alguma urgência, e uma dessas pessoas é Cristiano Ronaldo. Numa entrevista ao portal inglês SportBible, que o acompanhou na sessão de lançamento do novo perfume, confessou: "Nos últimos anos comecei a pensar no processo de me ver fora do futebol, portanto, quem sabe o que vai acontecer daqui a um ano ou dois?" A frase emancipou-se rapidamente do seu contexto e foi repescada para título por quase todas as publicações que reproduziram a notícia original. Por razões compreensíveis: que mais não seja, representa uma drástica revisão das estimativas de alguém que, até há poucos meses, assegurava confiantemente ter condições para jogar até depois dos 40 anos..Por enquanto só tem 34 e, embora os artigos a garantir que "testes científicos demonstraram" que tem um corpo de 23 continuem a aparecer, o confronto com os atritos e as fricções do calendário escalou, e já estivemos mais longe do momento inevitável em que o seu futebol será estritamente reduzido a compilações no YouTube ao som de tecno alemão. Cristiano chegou ao estágio da vida em que a gravidade começa a mostrar interesse, em que a gravidade começa a olhar para o corpo e a fazer perguntas. (Perguntas como: o que é que acontece se eu fizer isto? O que é que acontece se eu tocar aqui?) A luta contra a gravidade foi o fulcro da sua primeira reinvenção enquanto jogador - a que coordenou a segunda e mais espalhafatosa fase da sua carreira, entre 2006 e 2013, digamos, na qual se transformou num ariete todo-o-terreno, em constante perturbação vertical. O combate de qualquer velocista é sempre contra a força da gravidade, mas no caso específico de Ronaldo o risco não era o de cair, mas, sim, de levantar voo. Corria como se o seu centro de gravidade estivesse localizado nos músculos do pescoço. Até o controlo de bola parecia precário, provisório (característica cujo efeito estético será talvez a que melhor contribuiu para a indefinição do seu estatuto consensual entre os "maiores de sempre"). Para criar a voragem capaz de engolir recordes, teve de criar um estilo que devia menos aos pressupostos da beleza do que às operações da lógica. E durante seis ou sete épocas consecutivas, foi assim que tratou o futebol: como um conjunto de equações para serem resolvidas por um tanque de guerra. Tudo parecia um acto de desespero. Mas o desespero raramente triunfa; e Ronaldo triunfou vezes suficientes para fazer parecer a leitura do "desespero" algo pateta. Numa vinheta de Buster Keaton, Messi seria Buster Keaton: evadindo com elegante despreocupação as violências colossais e inconscientes de avalanches, descarrilamentos, manadas de búfalos. Ronaldo seria essas avalanches, esses descarrilamentos, essas manadas de búfalos, arrasando triunfantemente cenários inteiros à sua passagem..A ânsia de dominar cada jogo em que participava parecia por vezes implicá-lo numa tarefa titânica, mas paralela: sem qualquer relação directa com o mesmo, até ao momento de fazer a contabilidade. Esse Ronaldo 2.0 era um negócio de volume: margens pequenas compensadas pela inundação constante do mercado. O princípio operativo era o de que 90 minutos são o contexto ideal para falhar vinte vezes desde que se acerte cinco, especialmente quando mais ninguém tem condições para o tentar..A sua segunda reinvenção tornou-o mais visível dentro do campo como uma inteligência letal em movimento do que como um corpo em constante périplo devastador, seguido por holofotes. No seu auge, Ronaldo fornecia um foco de pânico capaz de absolver todos os colegas do escrutínio habitual, permitindo que os talentos específicos de jogadores como Scholes, Carrick, Özil ou Modric subsistissem nas margens camufladas da sua fulgurante omnipresença; mais tarde aprendeu a subordinar-se à burocracias inerentes do meio-campo, passando a assumir um papel mais cerimonial, e adoptando uma economia cinética, em que cada espasmo tenta ser um ingrediente corrosivo. A redução do número de intervenções obrigou cada uma a ser decisiva; o fio da navalha tornou-se mais exíguo..Funcionou, e continua a funcionar, e a sua encarnação mais recente (desde que foi para Itália) parece menos uma terceira reinvenção do que um modelo à escala do estilo anterior. Mas o volume decresceu, o maximalismo estatístico baixou para níveis humanos, e nesse intervalo reside a diferença entre uma anomalia de proporções históricas e aquilo que é "apenas" um avançado muito bom..É possível que "avançado muito bom" seja um estatuto para o qual nada na vida de Ronaldo durante os últimos 15 anos o tenha preparado. Os grandes jogadores parecem extravasar os limites do desporto que praticam. A questão é que a maneira específica como Ronaldo transcendeu esses limites pareceu dilatar apenas o seu próprio estatuto - é como se cada acto equivalesse a mandar a sua reputação ao ginásio com o propósito expresso de lhe aumentar os deltóides. A tragédia de ficar ocasionalmente em segundo lugar para outra anomalia histórica nunca pareceu incompatível com aquela supernova de autoconfiança - a petulante auto-estima de quem se sente capaz de aniquilar tribos inteiras sempre que desdobra o colarinho do seu pólo cor-de-rosa. O verdadeiro desafio seria sempre o momento em que a aura de supremacia que sustenta essa autoconfiança começasse a ser incompatível com a soma dos números disponíveis. A ideia de continuar a ser um "avançado muito bom" durante cinco ou seis anos pode ter-lhe parecido aceitável no passado recente. A revisão em baixa para "um ou dois anos" sugere que a estimativa terá sido optimista..Ronaldo nunca agiu como alguém que habitava confortavelmente o seu talento, mas como alguém que o inventou e foi sempre forçado a supervisioná-lo nervosamente. Talvez o apelo do "mundo empresarial" seja esse: outra arena onde o sucesso se mede em propriedades quantificáveis, e onde a retórica do "trabalho" e da "dedicação" também é moeda corrente. E o "mundo empresarial", aparentemente, é mesmo o que se segue. Naquilo que foi descrito como uma "conversa informal" com jornalistas quando do lançamento oficial de Play It Cool, Ronaldo explicou o conceito por trás da nova fragrância (é a segunda da linha): "Lorem ipsum dolor sit amet, consectetur adipiscing elit, sed do eiusmod tempor incididunt ut labore et dolore magna aliqua." Na verdade, não foi isso que Cristiano Ronaldo disse durante a "conversa informal" com jornalistas. O que disse foi isto: "Sinto realmente que esta fragrância pode transformar uma pessoa. Uma boa fragrância dá-nos a confiança para sermos a melhor versão de nós próprios e era essa sensação que eu queria engarrafar com o novo CR7 Play It Cool." No fundo é outra categoria de lorem ipsum: uma mistura entre banalidade publicitária e o credo neocalvinista que é a base da mitologia consolidada de CR7: o poder da vontade. O credo é agora matéria de fé secular e Cristiano Ronaldo, tal como o entendemos, é uma consequência dessa fé, tanto como a sua causa. Quando vemos futebol aos níveis superiores - e com uma atenção, digamos assim, supraclubística -, aquilo que procuramos num jogo não é apenas um teste objectivo de superioridade, mas uma construção estética autónoma e também uma história legível e fácil de articular; e as histórias mais fáceis de articular são (há vários milénios) aquelas em que carácter é destino. Na teologia do desporto moderno, o seu papel é o de um santo que pintou o seu próprio vitral. As suas obras acumuladas, com uma escala, dimensão e significado tão colossais que criam o seu próprio contexto, absorveram o autor, tornando-o não propriamente irreal (do modo etéreo que associamos a outra estirpe de grandes atletas), mas vagamente artificial. A propaganda torna-se tautológica e autocumprida, como se um livro de auto-ajuda tivesse ganho consciência e conquistado a galáxia..Mesmo com o lastro de privilégio material que arrasta, há sempre algo penoso na reforma precoce de grandes atletas: a irrelevante ubiquidade do talento desvanecido, condenada a percorrer o mundo dos sorteios da FIFA, das homenagens póstumas, das inaugurações de lojas, dos semi-secretos anúncios japoneses. Uma versão modificada deste destino aguarda inevitavelmente o Cristiano Ronaldo pós-futebol. Mas se nunca foi fácil imaginá-lo a terminar a carreira num Beira-Mar ou num Nacional, e ainda menos fácil imaginá-lo a ser treinador e a explicar a um balneário de criaturas menos importantes que os ia organizar em 4-3-3, há qualquer coisa naquele anúncio e no seu discurso recente que se mantém fiel à personalidade que inventou, dentro e fora de campo. Cristiano Ronaldo a participar em reuniões, a assinar documentos, a ouvir atentamente enquanto uma equipa de marketing lhe sugere novas combinações de lavanda, bergamota e cardamomo. Cristiano Ronaldo, com o seu robe de pele de leopardo, a atender um telefonema matutino para ser informado de que a sua nova fragrância ganhou um Frasco de Ouro nos Dubai Awards. Cristiano Ronaldo a ter um bom dia, diferente dos outros, e longe dos nossos..Escreve de acordo com a antiga ortografia.