Sempre me considerei um cobarde." Ecoando no enorme anfiteatro do Dolby Theatre, em Hollywood, onde a indústria do cinema se reúne todos os anos para disputar os Óscares, as palavras de Will Smith pesaram mais do que a vibração da sua voz. O rapper, ator e produtor leu as frases que abrem o primeiro capítulo da sua autobiografia, apropriadamente intitulada WILL, perante uma audiência em silêncio atormentado.."Quando tinha 9 anos, vi o meu pai esmurrar a minha mãe de lado na cabeça com tanta força que ela colapsou. Vi-a cuspir sangue", continuou Will Smith. Ouviam-se arquejos de horror entre os espectadores.."Esse momento naquele quarto, provavelmente mais do que qualquer outro momento na minha vida, definiu quem eu sou hoje. Dentro de tudo o que fiz desde então, os prémios, as distinções, a atenção, as personagens, as gargalhadas, houve um subtil fio de desculpas à minha mãe, pela minha inação naquele dia. Por lhe ter falhado naquele momento. Por não ter enfrentado o meu pai. Por ser um cobarde.". Depois de alguns segundos em choque, a audiência irrompeu em aplausos, absorvendo com o barulho a enormidade que um dos músicos e atores mais consagrados da sua geração tinha acabado de confessar sobre a sua infância..O evento, integrado na tour nacional em que Will Smith embarcou para promover a sua autobiografia, publicada na semana passada, foi um misto entre leituras do livro, momentos musicais inesperados - incluindo o fecho com Gettin" Jiggy Wit It - e um mergulho profundo nos segredos e histórias incríveis de um génio que passou a vida toda a achar que era um cobarde. "Parte da dificuldade em escrever este livro é que há coisas sobre a minha vida que nunca revelei, que nunca disse em voz alta", disse Will Smith, na conversa guiada pela cineasta Ava DuVernay. "O meu pai morreu em 2016 e fiquei livre para dizer a verdade sobre a minha vida e a minha infância.".Smith contou como o seu interesse precoce pela arte da performance esteve ligado à violência doméstica a que assistia. "Comecei a atuar como forma de manter a paz em casa. Se todos estão a rir ninguém é espancado", explicou. "Foi o meu mecanismo de defesa, e quando cresci tornou-se algo poderoso.".Criado num ambiente de rigidez militar, Smith recordou o que o pai lhe dizia: "Quando eu digo que tens uma missão, só há duas possibilidades: uma, completas a missão. Duas, estás morto.".Ainda assim, este livro não é um descolamento de um pai, Daddio, que causou dor e sofrimento. "Amava o meu pai", disse Will Smith, olhando de frente para a dicotomia impossível de resolver. "Algumas das melhores coisas em mim são assim porque ele era meu pai. Algumas das maiores lições da minha vida, a resiliência, a forma como penso, ele era o meu herói. E, ao mesmo tempo, ele espancava a minha mãe à minha frente", disse. Não é suposto odiar quem magoa a nossa mãe? Mas como odiar um pai? "A minha jovem mente torceu isso como um falhanço pessoal.".Na autobiografia, que escreveu com orientação de Mark Manson, Smith revela que chegou a pensar em suicídio quando a mãe saiu de casa, era ele adolescente, e conta como a imaginação e a criatividade foram o seu escape. Agarrou-se à música rap como defesa e ataque em simultâneo, uma couraça e um tradutor musical do que sentia. "Eu era um cobarde no mundo físico, mas com as minhas palavras esmagava os tolos." O livro tem histórias incríveis sobre a génese da sua carreira, com deliciosos pormenores de algo que os norte-americanos cultivam muito - serendipidade, ou a força extraordinária do acaso..A forma como conheceu o DJ Jazzy Jeff foi um desses acasos. Em adolescente, Will Smith era sempre contratado por uma miúda lá do bairro onde vivia em Filadélfia para ser DJ na sua festa de anos. Até que, quando ela fez 16, foi buscar um novo DJ de outra parte da cidade. Will Smith, ultrajado, quis ir lá ver quem era esse "tonto" que certamente não tocava melhor do que ele. E o que aconteceu foi uma noite mágica: Jazzy Jeff DJ, Will Smith MC. "Foi uma das noites criativamente mais incríveis da minha carreira toda", descreveu Will Smith. A dupla, DJ Jazzy Jeff & the Fresh Prince, viria a ganhar o primeiro Grammy de sempre para uma música de rap. Tudo por causa da festa de aniversário de uma tal de Judy Stewart..Dividido em capítulos cujos títulos descrevem os temas emocionais da jornada - começando em Medo e terminando em Amor, o livro de Will Smith está cheio de altos e baixos e momentos hilariantes - tal como a sua carreira. "Ganhámos o Grammy, vendemos três milhões de cópias... e depois penso que me esqueci de pagar os impostos", contou. O rescaldo do sucesso foi um desastre. "Ficar famoso é uma das coisas mais divertidas que podemos ter. Ser famoso é uma mistura. Mas deixar de ser famoso? Pós-famoso? Famoso pobre? É horrível", descreveu. "Estávamos falidos. Tive de vender tudo.".Foi aí que decidiu mudar-se para Los Angeles, com o seu amigo Charlie Mack, e este acabaria por ser instrumental na passagem de Will Smith da música para a televisão. "Com quem passamos o nosso tempo é uma decisão que define os nossos sonhos. Da pessoa que está ao nosso lado podemos receber remédio ou veneno quando abre a boca." Mack foi um bálsamo, e a história quase parece inventada: em LA, Mack obrigava Smith a ir todas as noites ao programa de Arsenio Hall, que na altura estava no topo, e apresentava-o a qualquer pessoa que parecesse importante. Uma noite, estava lá um senhor chamado Benny Medina, um executivo da Warner Bros. Records, que lhe perguntou se ele sabia representar. "Naquela altura, se alguém me perguntava se eu sabia fazer isto ou aquilo eu respondia sempre que sim, e mais tarde via como fazer", lembrou. Semanas mais tarde, Smith recebeu um telefonema de Quincy Jones - a lenda musical - porque Medina lhe falou nele. E Jones, convidando-o para ir à sua festa de anos, arranjou uma audiência improvisada para ver se Will Smith sabia representar. Ele não queria, tentou arranjar desculpas, mas acabou por ceder. O resto é história: a sitcom The Fresh Prince of Bel-Air catapultou Will Smith para a realeza do pequeno ecrã e, mais tarde, do cinema.."O melhor conselho que posso dar é: que se lixe. Tenta. Apenas cai, apenas falha", disse. "Às vezes queremos aprender a nadar antes de nos lançarmos à água e não é assim que funciona.".Aos 53 anos, com esta autobiografia na rua, Smith está longe de parar. O seu novo filme King Richard, em que interpreta o pai das tenistas Serena e Venus Williams, ainda não estreou no cinema e já está a ser falado para os Óscares. E o National Geographic está prestes a lançar a nova série Welcome to Earth, em que Smith explora os recantos mais surreais da Terra..Entrelaçada nestes projetos está sempre a fundação da família, pelo que uma grande parte do livro é sobre a relação do ator com a mulher e os filhos, Trey, Jaden e Willow. O evento incluiu mesmo uma performance de Just the Two of Us, canção de 1997 sobre o nascimento de Trey Smith. "Criar filhos não é uma ciência, é uma forma de arte", disse Smith, que contou entre gargalhadas como o seu segundo filho quase se chamou Luigi a pedido de Trey. "A nossa experiência é que quando os filhos se sentem amados, todas as outras coisas tendem a resolver-se." Falando da forma peculiar como encara a parentalidade e a família, Smith ficou de lágrimas nos olhos ao contar histórias que lhe abriram os olhos sobre o seu papel de pai. "Amar e ser amado é realmente tudo o que existe. Tudo o resto tem de ser montado de forma a apoiar isso", sublinhou. Quase arquejando, limpando o rosto com as mãos, disse à audiência que tudo aquilo que estão a ver na sua vida, na sua família, "é uma experiência sobre amor incondicional.". dnot@dn.pt