Ao descobrirmos uma trilogia de filmes de Jorge Silva Melo sobre outros tantos artistas portugueses (editados em DVD, com chancela da Midas Filmes), é talvez inevitável pensar na sua singularidade no interior do mercado audiovisual. De facto, estes retratos de Fernando Lemos, Sofia Areal e José de Guimarães são objetos deliciosamente "fora de moda", celebrando a possibilidade de as imagens e os sons nos ajudarem a conhecer a dimensão específica da criatividade desses artistas, muito para além da brevidade compulsiva de muitos registos televisivos..Com alguma ironia, deparamos aqui com uma aproximação a um conceito primitivo de programação televisiva, correspondente à classificação genérica de "artes e letras", expressão que, em tempos, serviu de título a um programa da RTP. Aliás, esta trilogia de documentários foi produzida pelos Artistas Unidos, precisamente com o apoio da RTP. Mais do que isso, no canto superior direito das suas capas, os DVD exibem um curioso rótulo: "Arte & Artistas"..A precisão, que é também uma forma de intensidade, do trabalho de Silva Melo começa na capacidade de assumir a primeira pessoa face ao trabalho dos artistas. Não para lhes sobrepor um discurso normativo, antes sublinhando uma via essencial da relação com as convulsões da arte. A saber: o encontro de um "eu" com outro "eu" e, num certo sentido, a valorização do "segredo" artístico como algo que, em boa verdade, de modo simples e didático, pode ser partilhado..Vale a pena sublinhar duas ou três componentes de tais encontros..Fernando Lemos: Como, não É Retrato? Entre os três filmes, será o de organização mais fragmentada, porventura também mais envolvente, já que se constrói a partir de uma entrevista registada em 2008, quando da passagem de Fernando Lemos por Lisboa, e uma outra, nove anos mais tarde, na sua casa de São Paulo. Artista de um permanente ziguezague geográfico e emocional Portugal-Brasil, Fernando Lemos define-se também como homem de muitos contrastes, de estudante a conselheiro de pinacotecas, passando por pintor, fotógrafo e tocador de gaita... Estamos perante um caso exemplar de descoberta de uma obra em contexto - sendo o contexto, em última instância, a pluralidade inesgotável de uma vida..Sofia Areal: Um Gabinete Anti-Dor Como o próprio Silva Melo explica, este documentário terá começado com a descoberta de um quadro de Sofia Areal numa montra de Lisboa... Há nesse acaso uma hipótese de ordem, que é também um sabor de desordem, em certa medida condensada na pergunta que o cineasta faz à pintora sobre o facto de o seu trabalho poder ser "uma promessa de felicidade"; a resposta tem tanto de contundente como de sensual: "Ou é mesmo a felicidade." Rodado ao longo de diversos encontros, no período 2011-2016, é um filme para sentirmos o labor intransigente das formas, da sua procura, encontro, desencontro e renovada procura..A África de José de Guimarães De imediato, o título esclarece que se trata de observar as marcas de todo um continente na obra de um criador. Mais precisamente, ao partir para Angola, em 1967, no cumprimento do serviço militar, José de Guimarães sente o impacto da arte africana primitiva como algo que, afinal, iria marcar toda a sua trajetória pessoal, enquanto colecionador e criador. Trabalhando a partir das formas dessa arte, ele assume-se como um experimentador que elabora um novo "alfabeto" de sinais e significações. A coleção de arte tribal do artista impressiona, desde logo pela sua dimensão, ajudando-nos a sentir o misto de distância e proximidade que podemos descobrir no olhar dos outros..Redescobrir os clássicos franceses em DVD.De Renoir a Ophüls, os clássicos do cinema francês voltam a ser um acontecimento no mercado do DVD: onze filmes para redescobrirmos os mestres que inspiraram os cineastas da nova vaga..Observando o modo como o markerting cinematográfico investe o essencial dos seus recursos nas produções de "super-heróis" e afins, somos forçados a reconhecer que os clássicos, mais do que marginalizados, passaram a ocupar um pequeno território de resistência. Nas salas e também no DVD, como agora se prova pela edição (em alguns casos, reedição) de títulos de grandes autores do cinema francês, produzidos, em particular, durante a década de 1950..Trata-se de uma "Coleção cinema francês - Os grandes mestres" com chancela da Leopardo Filmes. Dos três volumes já editados, só o primeiro é dedicado apenas a um realizador, Jean Renoir (1894-1979), com três títulos: O Crime do Sr. Lange (1936), French Cancan (1954) e Helena e os Homens (1956). Os dois outros volumes apresentam, cada um deles, quatro filmes de dois cineastas: Marcel Pagnol (1895-1974) e Sacha Guitry (1885-1957), no segundo; Jacques Becker (1906-1960) e Max Ophüls (1902-1957), no terceiro..Tendo em conta que predominam produções da década de 1950, vale a pena recordar que a revolução estética - de temas, sensibilidades e linguagens - protagonizada ao longo da década seguinte pela geração da nouvelle vague não pode ser compreendida como se os respetivos autores tivessem partido do zero. Bem pelo contrário, foi em criadores como Renoir, Ophüls ou o muito esquecido Guitry que eles reconheceram as marcas de uma singularidade (francesa, antes do mais) cuja herança importava estudar, assumir e transfigurar. De alguma maneira, Jean-Luc Godard, François Truffaut ou Eric Rohmer foram modernos através da sua relação com o património legado por esses clássicos..Aqui encontramos, por isso, toda uma pluralidade artística que vai do "impressionismo" de Renoir ao gosto teatral de Guitry, sem esquecer o "romantismo" de Becker, em particular no mítico Casque dOr/Aquela Loira (1952), com Simone Signoret no seu papel mais emblemático (trailer original)..Enfim, são onze filmes capazes de nos ajudar a relativizar e, mais do que isso, superar qualquer visão pitoresca do passado cinematográfico. Como bons cinéfilos, podemos e devemos reconhecer a espantosa atualidade destes mestres. Entre os títulos editados, eis três exemplos modelares:.Helena e os Homens (1956), de Jean Renoir. É o filme que conclui a "trilogia da felicidade" de Renoir, depois de A Comédia e a Vida (1952), celebrando as ambivalências existenciais do teatro, e French Cancan (1955), evocando a fundação do Moulin Rouge, em Paris, em finais do século XIX. Também situado no apoteótico e colorido fin de siècle, Helena e os Homens possui a dimensão de uma fábula romântica sobre os enigmas do masculino/feminino, com Ingrid Bergman, numa das suas composições mais delicadas e etéreas, contracenando com Jean Marais e Mel Ferrer..Veneno (1951), de Sacha Guitry. Quando vemos agora o genérico de abertura deste filme, com o próprio Guitry a apresentar, com carinho e pompa, os elementos da sua equipa (atores e técnicos), sentimos que estamos perante um espírito realmente livre. Ou seja: Guitry é alguém que assume uma descomplexada teatralidade para, a partir daí, construir um discurso cinematográfico que envolve sempre uma visão sarcástica dos limites da moral humana. Com o brilhante Michel Simon no papel central, esta é uma desconcertante parábola sobre a "lógica" de um ato criminoso e, nessa medida, a infinita ambivalência das relações sociais..Madame de... (1953), de Max Ophüls. Antes do seu lendário e derradeiro filme, Lola Montès (1955), Ophüls realizou O Prazer (1952) e Madame de... (1953), ambos incluídos nesta edição. Com Danielle Darrieux num dos mais requintados papéis da sua carreira, Madame de... encena as atribulações de uma dama da belle époque cuja reputação se enreda no circuito insólito de uns brincos que podem revelar mais do que as conveniências exigem... Através dos encontros e desencontros amorosos, num misto de ceticismo e ironia, Ophüls filma sempre a insensatez dos desejos humanos (trailer espanhol).