O sucesso do romance A Catedral do Mar transformou o advogado Ildefonso Falcones num dos autores mais conhecidos dentro e fora de Espanha. O retrato de uma Barcelona feudal foi responsável por grande parte dos sete milhões de exemplares que já vendeu dos quatro romances publicados. Agora chega às livrarias o mais recente trabalho: O Pintor de Almas. O novo livro tem uma nota inicial que revela que o escritor escreveu grande parte deste livro enquanto se tratava de um cancro e a entrevista aqui publicada foi realizada entre visitas ao médico, sobre as quais disse: "Há que confiar e esperar." Nada que o impeça de pensar no romance que se segue, embora ainda não tenha escolhido o tema. Desta vez, regressa a Barcelona, mas séculos depois. Tudo acontece em 1901, quando a cidade está em polvorosa devido aos protestos contra a situação social dos mais pobres. Esse levantamento popular atravessa todo o livro, obrigando o leitor a recordar as notícias mais recentes de uma luta histórica pela independência da Catalunha..Este é um romance em que o povo anda na rua. A realidade política dos últimos tempos influenciou a escrita ou foi coincidência? Não. Os movimentos populares que há hoje na Catalunha e em Barcelona não me influenciaram e tão-pouco creio que haja uma excessiva semelhança entre as situações. Naquela época eram os operários que lutavam pelos direitos laborais e hoje parece que são "revolucionários" e gente sem uma ideologia concreta que só pretendem protestar nas ruas e com violência. Não creio que seja comparável..Hoje não há um propósito tão definido? Não existe um propósito tão definido nem os movimentos são iguais. Atualmente, temos profissionais da violência e da revolta em vez dos trabalhadores a lutar por melhores condições de vida..Os seus romances têm proporcionado aos leitores de toda a Espanha uma visão da história da Catalunha. O seu interesse é olhar o passado catalão ou também o de Espanha? Escrevi cinco romances, dos quais três são sobre a Catalunha e dois sobre Espanha. Reconheço que me é mais cómodo escrever sobre a Catalunha e Barcelona pela sua proximidade. Ao escolher o tema da Barcelona modernista tive de investigar muito, mas a cidade está a meia hora da minha casa e vou a passear até lá. Já escrevi sobre Córdova, Granada, Sevilha e Madrid, mas como o que eu gosto é de história, tanto faz. Até poderia ser sobre Portugal se não fosse o problema da língua, afinal os dois países estão muitos unidos nos percursos..Foi necessária uma grande investigação para descobrir a Barcelona de 1901? Na maior parte das vezes, acho que as investigações são muito mais complexas do que a escrita do romance. Há que limitar os acontecimentos no seu próprio tempo e perceber que em 1700 os meios de transporte circulavam pelas estradas nacionais espanholas que ainda seguiam os trajetos das vias romanas. Sabemos como as pessoas iam de um lado ao outro, mas ao escrever-se sobre 1900 já é diferente porque as alterações começam a ser muito rápidas e isso requer um estudo complicado..Na versão final do romance ainda encontrou erros que teve de corrigir? Isso acontece sempre. É impossível não encontrar erros que escapam ao escritor, aos editores e aos revisores.. O Pintor de Almas deve ter sido muito exigente no que respeita ao enquadramento histórico da época? É verdade, mas isso não me preocupou porque vejo uma grande beleza nesse processo de investigação e de escrita. É complexo, mas bastante interessante e bonito porque essa época tem um movimento artístico que é impressionante e muito atrativo, tanto no seu estudo como na sua descrição..Este livro tem duas grandes linhas: desigualdades sociais e modernismo. Era o seu objetivo ou o romance mudou no caminho? Desde o princípio que queria escrever este romance desta forma, mas houve partes que ganharam importância a meio do caminho. Eu conhecia a história e como os acontecimentos se foram desenvolvendo, mas à medida que se aprofunda muito o relato, a história vai ganhando outras componentes e situações interessantes. Por exemplo, a participação da mulher nas revoltas sociais era algo que desconhecia e fui percebendo à medida que ia aprofundando..As personagens femininas fortes não são exclusivas deste romance. Em A Mão de Fátima, por exemplo, existiam mulheres destas. Gosta de as tornar protagonistas? Sim, atrai-me bastante porque a iniciativa e a força que têm as mulheres são do ponto de vista literário francamente atrativos e um recurso literário muito importante..Foi difícil saber como pensavam em 1900? Há estudos suficientes para se estabelecer a ideia de como eram as mulheres, sobretudo porque elas partilhavam com os homens algo que era muito normal naquela época: um grande grau de analfabetismo. E havia o machismo preponderante nas leis dessa altura. Houve muitos avanços sociais e o feminismo também foi muito importante..Nas descrições do livro parece que o escritor estava revoltado com tanta injustiça? Sim, às vezes ficava um pouco desagradado com o que acontecia aos nossos antepassados, mas creio que essa componente está presente em todos os meus romances..Qual foi a temática mais difícil investigar? Foi a situação social, porque existem pontos de vista divergentes, e surpreendeu-me o que aconteceu na Semana Trágica [religiosa], assunto muito pouco estudado..Na análise histórica faz uma grande crítica ao papel da Igreja. Ainda é reacionária? Existem algumas facetas de Igreja que ainda podemos considerar serem muito conservadoras, reacionárias ou inamovíveis, mas houve uma mudança transcendental. Como na educação religiosa e na assistência social, onde avançou mais que outras instituições..Os ricos e poderosos de 1900 permitiram criar uma cidade faustosa e com uma arquitetura surpreendente. E os de hoje? Não são assim, pelo menos eu não encontro exemplos nas grandes empresas que constroem edifícios modernos que se tornem simbólicos. Nem há um movimento social como o daquele tempo em Barcelona. Hoje, os grandes ricos vivem num luxo insultuoso para a sociedade e é mesmo uma situação burlesca. Acredito que os ricos e poderosos de hoje não fariam a Barcelona o que os de 1900 fizeram nem podem aproximar-se dessa história da cidade..O que mais aprecia em Barcelona: o medieval ou o modernismo? Em Barcelona há as duas arquiteturas, a diferença é que o medieval e gótico existe em muitas cidades europeias, enquanto o modernismo é muito difícil de existir tal como em Barcelona em qualquer parte do mundo..A maioria dos romances sobre Barcelona referem a obra de Gaudí. O seu fala de Maragall, de Domenèch e de outros menos conhecidos. Quis recuperar esse esquecimento? Sim, foi um dos grandes objetivos do meu romance. Gaudí é um artista fora de série, mas desejavam realçar que o modernismo não é só ele e que a obra mais importante do modernismo, que é o Palau de la Música, não é de Gaudí mas de Domènech. Pode-se dizer que houve muitos criadores que contribuíram para criar e desenvolver o que hoje encontramos em Barcelona..Gaudí eclipsa todos os outros? Sim, conseguiu uma grande preponderância por causa do seu génio fora de série..São quase 700 páginas. Não é excessivo? Pode-se contar sempre uma história em menos espaço, mas para um romance histórico este é o número de páginas correto. Pode parecer muito grande, mas não é..Mesmo com os leitores a rarear? Se eu pedir um whisky e pelo mesmo preço me servirem o dobro fico satisfeito. Se o leitor está a ler um livro muito bom, quer é que ele não acabe. Eu pretendo dar ao leitor o mesmo que eu gosto: entretenimento. Não quero dar uma lição, não estou capacitado nem o desejo. Quero contar histórias. Prefiro ser comercial do que literário..Os seus romances são sempre históricos. É a melhor forma de contar uma história? No meu caso, sim. É uma combinação cómoda e os leitores gostam, bem como as editoras, por isso está tudo a correr bem..Escreve em catalão ou em castelhano? Em castelhano, em catalão não sei escrever porque nunca o dominei de forma total a ponto de ser capaz de escrever..Este é o quinto romance. O próximo já está pensado? Tenho sempre ideias, o problema é a capacidade para as desenvolver, e eu estou com uma situação de saúde precária..Os leitores leem a frase inicial sobre a sua saúde. Não condiciona a leitura do livro? Espero que não, caso contrário não a teria incluído. Não era meu desejo que a minha situação pessoal possa condicionar o leitor - espero e confio que não. A situação pessoal do autor é uma coisa e a ficção que se propõe ao leitor é outra..Esta doença alterou em muito a sua vida? Sim, mudou bastante..A doença mudou o rumo do romance? Quero acreditar que não, mas esse julgamento está nas mãos do público. O Pintor de Almas foi escrito nesta situação, mas não mostra grandes diferenças em relação aos livros anteriores..As lutas políticas que descreve têm paralelo com a atualidade, como a prisão dos dirigentes políticos da Catalunha. Este será um tema para um romance no futuro? Será necessário esperar um século para quem escreve romances históricos. O problema é que quando se fala de política, designadamente em Espanha, somos logo catalogados numa ou noutra tendência..Toda a tensão que existe na sociedade catalã influencia a escrita? Sim, mas não a nível de ficção, nem conheço livros inspirados na atualidade a não ser a nível de ensaio. Nessa área há muitos..O separatismo e o independentismo não são bons para a criatividade literária? Acredito que qualquer movimento involutivo, que não seja aberto e universal e que apenas pretenda potenciar determinados valores previamente escolhidos, não é bom para a criatividade literária. A arte quanto mais universal, mais livre e mais aberta for, melhor, e quando se parte de posições sectárias e partidárias, isso influi na arte..Qual é a sua posição sobre a independência da Catalunha? Creio que seria um erro, porque significaria a saída da União Europeia. Já tenho alguma idade e essa situação não me afetaria tanto assim, mas os jovens e os estudantes de hoje seriam bastante. Não poderiam trabalhar em França, por exemplo, e isso seria muito prejudicial para os seus projetos de futuro..Não lamenta ter abandonado a advocacia? Não, em absoluto. A vida tem épocas diferentes e umas acabam e outras começam..A personagem Dalmau é autobiográfica? Eu gostaria de pensar que é uma personagem, pois se é autobiográfico é porque me faltariam recursos para a ficção. Não sei se inconscientemente existe algo, os que me conhecem é que podem dizer se há algum paralelo, eu não tenho capacidade..Tal como Dalmau ficou órfão aos 16 anos... Sim, isso é verdade. Efetivamente, não tinha pensado nisso até agora. É uma semelhança, afinal..O Pintor de Almas.Ildefonso Falcones.Editora Suma de Letras.696 páginas