Os rádio-amadores que navegam nas ondas hertzianas

Estão presentes no nosso dia-a-dia e provavelmente não lhes damos a importância merecida. As ondas hertzianas, mais conhecidas por ondas de rádio, são o suporte de informação, seja voz, imagens ou dados, através do qual funcionam as comunicações das forças de segurança, por exemplo. Mas são muito mais do que isso. <em>(Texto originalmente publicado a 10 de maio de 2019)</em>
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"Se não tenho o radioamador acordava morto." É Abel Baptista que o diz, sem rodeios e com a emoção a embargar-lhe a voz. O discurso é interrompido por momentos de silêncio que não escondem as lágrimas ao lembrar o dia em que lhe salvaram a vida. Há quatro anos, o então camionista estava a conduzir em terras de Espanha e, chegando à cidade de Vitória, Burgos, começou a sentir-se mal. Valeu-lhe as ondas hertzianas ou, melhor, o aparelho de radioamador que instalou no camião e que lhe permitia, enquanto conduzia, estar em comunicação com outros companheiros do radioamadorismo em Portugal e no mundo.

"Começo a sentir-me mal, estava a doer-me o peito e a transpirar. Transmiti ao meu colega de Coimbra o que estava a sentir", lembra. Do outro lado, o radioamador, o "amigo Machado", como faz questão de dizer, percebeu a gravidade da situação. "Para já, no primeiro parque que encontrares, deitas-te no camião e deixas as portas abertas", disse ao camionista. Palavras que Abel Baptista ouviu na cabina do camião e que agora recorda ao DN. "Ele salvou-me a vida", diz, num tom de agradecimento que não cabe nas palavras.

O camionista de Seiça, Ourém, fez o que o amigo de Coimbra lhe pediu. Outros amigos radioamadores em Portugal avisaram as autoridades espanholas. Já lhe conheciam os hábitos e a rota que fazia. Em cerca de meia hora, o português foi encontrado. Abel Baptista nem se recorda de o terem retirado do camião. "Só me lembro de no dia seguinte acordar no hospital com as enfermeiras ao meu lado", conta o radioamador que tem como indicativo de chamada CT7ACP, a forma como a pessoa se identifica nos contactos de comunicação via rádio. Foi operado de urgência ao coração, tem um bypass, vendeu o camião e a sua história até foi notícia de jornal em O Mirante. Agora tem mais tempo livre para se dedicar ao passatempo de cerca de seis mil portugueses. Deixou as estradas como camionista, mas continua a viajar nas ondas de rádio que o levam a falar com "colegas italianos, alemães, com qualquer pessoa e em qualquer parte do mundo". Sem sair de Ourém, a partir da estação de radioamador que construiu em casa.

Mas o que é um radioamador? É uma pessoa que conjuga o gosto pela comunicação e pela eletrónica e usa as comunicações via rádio sem fins comerciais. O professor catedrático do Instituto Superior Técnico, Moisés Piedade, acrescenta que é alguém com licença para o "uso do espectro eletromagnético, com bandas de frequências atribuídas" pelo regulador "para experimentação técnica e científica das tecnologias de radiocomunicação". A primeira licença de radioamador que Moisés Piedade teve é do fim dos anos 1960.

São as ondas eletromagnéticas, denominadas por ondas hertzianas, popularmente conhecidas por ondas de rádio, que permitem verdadeiras autoestradas de comunicação "pelo ar" e que têm inúmeras utilizações. Desde o radioamadorismo
passando pelo gesto diário de usar o telemóvel, aquecer uma refeição num micro-ondas, ouvir rádio, até ao desenvolvimento de um satélite, criado por portugueses, entre os quais dois radioamadores.

Afinal, as ondas de rádio são o suporte da transmissão da informação, seja ela voz, imagens ou dados, e são utilizadas, por exemplo nas comunicações entre as forças de segurança.

Voltamos à estrada e chegamos a Almeirim, onde vive Salomão Fresco. É técnico de pré-impressão e trabalha numa gráfica. Mas ser radioamador não é um hob­by exclusivo de pessoas que trabalham com eletrónica, esclarece. "Pode encontrar médicos, agricultores, técnicos de eletrónica, dentistas", enumera. É radioamador há 16 anos, mas a paixão vem da meninice. Aos sete anos, os pais deram-lhe um brinquedo que o encantou. "Era a magia dos walkie-talkies e eu achava engraçado poder falar com alguém a algumas centenas de metros de distância e como aquilo se processava", recorda. E foi a partir daí que tudo começou. Nas ondas da rádio, inicia a comunicação com o seu indicativo de chamada. "Charlie Tango Dois Índia Romeu Julieta", que é como quem diz CT2IRJ.

Gastou entre três e seis mil euros na estação que tem em casa. Entre rádios, aparelhos emissores e recetores, antenas, microfone e cabos.

Não é, no entanto, qualquer um que pode exercer esta atividade. Para se ser radioamador é necessária uma autorização do regulador. Tem de se tirar uma licença da Autoridade Nacional de Comunicações (ANACOM). "Porque nós utilizamos o que se chama o espectro radioelétrico. Ou seja, usamos as frequências de rádio que são regulamentadas pela ANACOM", diz Salomão Fresco.

O espectro é como o espaço público, ajuda a simplificar o professor do Instituto Superior Técnico (IST) Rui Rocha, também um radioamador. "Se não houvesse regras de trânsito chocávamos uns com os outros e aqui é a regulamentação do espectro radioelétrico", explica. Faz-se exames e, mediante aprovação, o regulador passa um Certificado de Amador Nacional (CAN). Existem 5906 radioamadores com o "CAN válido", a que estão associadas "6153 estações individuais de amador".
As regras de funcionamento das "estações de radiocomunicações dos serviços de amador e de amador por satélite" estão estipuladas no Decreto-Lei nº 53/2009.

São também definidas, no âmbito do quadro nacional de atribuição de frequências "as faixas de frequência e outras condicionantes relevantes para a utilização do espectro".

Além das obrigações e direitos, também está impressa a importância da rede nacional de radioamadores em casos de catástrofe. Quando as comunicações oficiais de um país falham - quem não se lembra das polémicas quebras do SIRESP - podem ser os radioamadores o garante do restabelecimento dessa comunicação. Há várias associações de radioamadores que têm, aliás, protocolos com a Autoridade Nacional da Proteção Civil (ANPC).

Num mundo em que a internet facilita o acesso à informação e a comunicação, podia pensar-se que o radioamador perdia
importância. Nada mais errado! Podem salvar vidas, como a de Abel Baptista ou de navegadores solitários que perderam o controlo das embarcações, ajudar populações em locais mais remotos do globo ou isoladas, como as de Moçambique que foram afetadas pelo ciclone Idai. "Houve colegas nossos que, em Moçambique, puseram as estações de radioamador ao serviço da população. Contactaram colegas em Portugal, a transmitir e a receber informações, para informar sobre as necessidades de ajuda imediata", exemplifica Salomão Fresco.

As consequências do incêndio de Pedrógão Grande também refletem esse espírito de ajuda. "No pós-incêndio, uma equipa
de cinco ou seis colegas deslocaram-se às povoações afetadas que não tinham telefone, eletricidade e internet. Nada", recorda Salomão Fresco. "Estabeleceram alguns pontos de comunicação e transmitiram e receberam informações sobre as necessidades efetivas."

Radioamadores criam e desenvolvem satélite em Portugal

Visto como um passatempo, o radioamadorismo é também sinónimo de investigação científica, reflexo do desenvolvimento, exploração e estudo das ondas de rádio que acontece há mais de um século, graças às contribuições do físico alemão Heinrich Hertz, o britânico James Clerk Maxwell e o italiano Guglielmo Marconi. As primeiras comunicações eram feitas por código morse e já na Primeira Guerra Mundial eram usadas.

Mais avançadas, as comunicações via rádio ganharam mais importância durante a Segunda Guerra Mundial. "Os ingleses montaram uma rede de estações de rádio ao longo da costa. Toda essa rede era utilizada para fazer escuta de transmissão de rádio dos alemães para depois descodificar as mensagens", conta Rui Rocha.

A relação do radioamadorismo com a ciência é, por exemplo, o que está a ser feito no Técnico com o apoio da Agência Espacial Europeia (ESA, na sigla em inglês) e em parceria com a Associação Portuguesa de Amadores de Rádio para Investigação, Educação e Desenvolvimento (AMRAD), a que preside Moisés Piedade.

Estudantes, professores e radioamadores estão a trabalhar num satélite totalmente desenvolvido e criado em Portugal. O ISTsat-1 deverá ser lançado em 2020. Surge depois do PoSAT-1, um projeto liderado pelo cientista Fernando Carvalho Rodrigues e lançado em 1993. Moisés Piedade e Rui Rocha, dois radioamadores, fazem parte da equipa que coordena o grupo de trabalho que desenvolve o ISTsat-1 numa das salas da universidade no Taguspark, onde estão rádios de diferentes frequências e bandas. É a estação terrestre com o indicativo de chamada CS5CEP.

As ondas hertzianas estão em todo o lado e usámo-las como suporte de informação para as mais diversas finalidades, o radioamadorismo é apenas uma delas. Contribui para o estudo científico e há até entre os laureados com o Prémio Nobel o radioamador norte-americano Joseph Taylor, astrofísico que, em 1993, foi distinguido com o prestigiado prémio na área da Física. O ator Marlon Brando, o antigo rei Hussein da Jordânia e o astronauta Yuri Gagarin são outros exemplos de radioamadores famosos.

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