Na noite de 24 de abril de 1974, quando já as senhas da Revolução se preparavam para ecoar na rádio, Joan Sutherland cantou La Traviata na sala do Coliseu dos Recreios, em Lisboa, mas a única mulher caída nessa noite foi a ditadura..No dia 26 de abril, o jornal, que era uma voz oficial do regime do Estado Novo, põe na rua a notícia de que tinha sido rasgada a ditadura na madrugada de 25. A manchete a toda a largura em cinco linhas anuncia com um tom aparentemente resignado: "Golpe de Estado às primeiras horas de ontem. O Movimento das Forças Armadas triunfou e anuncia a entrega do governo a uma Junta de Salvação Nacional presidida pelo general António de Spínola.".Na primeira página é possível ficar a saber algo mais sobre o "momento histórico" que se vive: "Ignora-se ainda o destino do almirante Américo Thomaz", que era o Presidente da República; "Marcelo Caetano rendeu-se no Quartel do Carmo"; "Grave incidente com a D.G.S. [PIDE] (3 mortos e 45 feridos)"; "No resto do país, tudo corre normalmente." Em baixo, além da "proclamação ao país" da junta, fica a saber-se que o presidente do Conselho, Marcelo Caetano, "seguiu para a Madeira"..A memorável récita e a notícia de pernas para o ar.Tudo corre normalmente: nas páginas interiores do jornal, há então esse "extraordinário êxito na récita popular com a ópera La Traviata", em que se fala da "memorável récita de ontem à noite no Coliseu dos Recreios". O jornalista troca-se: o "ontem" já era anteontem, dia 24 à noite. Aliás, como se lê noutro local do jornal, "as salas de espetáculos encerraram as suas portas", "por motivo de precaução dos espectadores". Na véspera da Revolução, milhares encheram a sala de espetáculos e disso se entusiasmava o articulista, ao notar que "a tradição operática" naquele palco "não é um mito". (É hoje.).As notícias sobre a "vida artística", com apontamentos que hoje se arrumam nas secções de cultura dos jornais, surgem na página 6, depois de nas cinco anteriores o DN se alongar pelos acontecimentos do dia 25. A partir de Nova Iorque, num despacho datado de 25, informa-se que "delegados das Nações Unidas seguem com grande interesse os acontecimentos de hoje em Portugal". Na tipografia trocam-se as letras da segunda linha que saem de pernas para o ar..Talvez fosse assim que se sentia o embaixador de Portugal na ONU, de pernas para o ar: "O Dr. António Patrício, irmão mais velho do Dr. Rui Patrício, que era ministro dos Negócios Estrangeiros do governo de Lisboa", não fez qualquer comentário "ao levantamento militar em Portugal continental", no que foi acompanhado pelos restantes membros da missão portuguesa..O momento grave e a absoluta calma.Quem não digeria bem o que se passava "na metrópole portuguesa" era o embaixador de Portugal no Brasil. Numa declaração transmitida pela rádio à "comunidade lusitana" nesse país sul-americano, José Hermano Saraiva - um dos "ultras" do regime, que tinha sido o ministro da Educação que caiu com a crise académica de 1969 - pedia "aos portugueses que se mantenham calmos". "Estamos a viver um momento grave e crucial da nossa história", notava Hermano Saraiva..O leitor mais atento ao seu DN de sempre terá notado uma importante mudança no jornal: na página 4 dá-se conta das "repercussões no país e no estrangeiro" e num título que remete para os despachos de várias partes do mundo - "África, Europa e Estados Unidos atentos ao que se passa em Lisboa" - surgem informações de Moçambique e de Angola, que ainda na véspera eram incluídas na página "Portugal em todos os quadrantes", com notícias "do ultramar"..As autoridades nestes dois territórios dizem desconhecer quem são os "dirigentes do Movimento das Forças Armadas", esperam "informações fidedignas" sobre o que se passa em Portugal e garantem que reina "a mais completa calma", no caso de Moçambique, e "absoluta calma, embora com certa expectativa", no caso de Luanda..Outra novidade: o jornal regista "telegramas da Reuters, datados de Lusaka (Zâmbia)" que anunciam que "combatentes dos "Movimentos de Libertação" nos territórios africanos de Portugal não se sentem seguros sobre se o golpe militar em Lisboa virá ajudar a luta que travam pela independência total das "colónias"..Cumprir o dever e os deputados que nunca mais se reuniram.Quem não estava seguro de como devia atuar era o presidente da Assembleia Nacional, Amaral Neto. Segundo explicava o DN, "não se realizou por falta de quórum a sessão plenária marcada para ontem", dia 25. O debate do dia, que não aconteceu, era o da proposta de lei sobre promoção e defesa do consumidor "e, caso houvesse tempo, de continuar a discussão sobre o aviso prévio relativo à formação agrícola profissional". Houve apenas 42 parlamentares que responderam à chamada, abaixo do quórum necessário de 51 deputados..Amaral Neto, segundo o DN, "antes de encerrar a sessão", tentou remar contra os ventos da história: "Nada acho de melhor para dizer a V. Exas. do que recordar-lhes uma frase eterna: 'Tal como noutra terra e noutras circunstâncias, muita gente espera de nós que cumpramos o nosso dever.' Nesta confiança, nesta certeza, e esperançado na dita, marco a sessão para amanhã, à hora regimental, tendo como ordem do dia a da sessão de hoje.".O jornal nota que "eram 15.43" quando os trabalhos terminaram, "mas os deputados presentes, que não escondiam as suas apreensões pelo desenrolar dos acontecimentos, tal como, aliás, indiretamente, o afirmou o presidente da Assembleia, mantiveram-se por largo tempo no hemiciclo, comentando vivamente a situação"..À hora regimental do dia 26, Amaral Neto já não era presidente da Assembleia Nacional. A Lei n.º 1/74, de 25 de abril, "destitui das suas funções o Presidente da República e o atual governo e dissolve a Assembleia Nacional e o Conselho de Estado", determinando "que todos os poderes atribuídos aos referidos órgãos passem a ser exercidos pela Junta de Salvação Nacional"..Sporting desceu em Madrid. E as eleições desapareceram do jornal.Com os aeroportos nacionais encerrados e os voos desviados para outras paragens, o Sporting é apanhado no ar. Depois de ter sido derrotado na Alemanha, pelo Magdeburgo, por 2-1, falhando o acesso à final da antiga Taça das Taças, "a equipa do Sporting desceu em Madrid". A direção do clube leonino, informava o DN, tratou de "imediatamente" arranjar um autocarro para transportar para Lisboa a sua equipa..Além desta notícia, há apenas uma outra relacionada com futebol, que ocupa a página desportiva do DN, a de que "o presidente do México determinou o saneamento do futebol profissional". No mais, destacam-se outras modalidades: no xadrez, analisa-se o match Spassky-Karpov; no montanhismo dá-se nota da morte de três sherpas nos Himalaias; no tiro a chumbo e no remo anunciam-se um torneio de tiro aos pratos e uma regata de fundo..Nesta mesma página, um comunicado da direção da RevistaMoeda e o Banco de Angola comunicam que foi adiada a III Feira Internacional da Moeda no Hotel Ritz, para os dias 25 e 26 de maio..O que falta nas páginas do DN? As eleições presidenciais francesas, que nos dias antes do 25 de Abril eram presença quotidiana na primeira página..A lingerie que lembra o ajustado ao corpo e os ovos frescos para o pudim.Nem tudo se adia com a Revolução: no dia 26 de abril, o DN apresenta duas páginas "da mulher e do lar". "Tomem nota minhas senhoras", avisa o jornal, para dizer ao que vai: "Lingerie: maior variedade". A partir de Paris, nota-se que, "se o uso da calça para as mulheres fez diminuir a confeção de certas peças de lingerie, como as combinações, esse uso, em contrapartida, contribuiu para a ascensão de um novo tipo de vestuário de baixo e o de cima: o body, ou body-pull, que lembra o "ajustado ao corpo, das dançarinas". E seguem por aí fora as notas sobre a moda interior..À lingerie soma-se a ementa da semana, que inclui puré de favas, pescada au gratin, carne de carneiro com molho vermelho e pudim de ovos-moles. Este pede "uma chávena almoçadeira" de açúcar, outra de água e também de amêndoas, a que se juntam seis ovos e mais seis colheres de açúcar. Na segunda página deste breve suplemento aconselham-se "sequências" para "olhos e pálpebras" - "a aparência dos olhos é, geralmente, o sinal de uma boa ou má saúde" - e também sobre "ovos frescos", certamente a ter em conta para a receita do pudim..Os jovens que não eram da PIDE. E os pides que mataram cinco.Depois de uma segunda edição no dia 25, em que o DN relata os primeiros acontecimentos desse dia, também no dia 26 o tempo acelera: o jornal lança uma segunda tiragem pelas 12.30. A primeira página é já diferente da que saiu nessa manhã e nela se dá conta das "primeiras decisões da Junta de Salvação Nacional" e relata-se que "Américo Thomaz e Marcelo Caetano partiram esta manhã para o Funchal"..Se muita da informação repete noticiário da manhã, há uma novidade revelada na página 7: "Às 09.30 a DGS rendeu-se incondicionalmente" - os pides venderam cara a sua rendição fazendo cinco mortos e 45 feridos de uma revolução que também teve sangue. Numa breve, noutro canto do jornal, dá-se conta de que há "mais dois mortos"..O jornal apresenta ainda o "esclarecimento" de dois jovens, José Manuel Soares Rocha e José Gonçalves de Sousa Pereira, que foram apanhados pela objetiva do fotógrafo do DN no dia anterior. "Não somos da DGS. Passávamos no Chiado e os fuzileiros navais revistaram-nos quando o faziam também a verdadeiros agentes", afirmam os dois..No dia 27 de abril, a rendição da PIDE é recuperada para a manchete, que garante a toda largura da página a "normalização e liberalização da vida política nacional" como "pontos essenciais de um vasto programa". E há mais: "Postos em liberdade todos os presos que se achavam em Caxias e em Peniche.".Tudo a nu com parra nova e os bispos com palavras de reconciliação.É nesta edição também que se conta que E depois do Adeus, de Paulo de Carvalho, e Grândola, Vila Morena, de José Afonso, foram os sinais combinados para o início da ação do Movimento das Forças Armadas. Nos palcos renova-se o texto: a revista Tudo a Nu, que ia no Teatro ABC, anuncia-se "agora com parra nova" e Ver, Ouvir e... Calar!..., no Maria Vitória, diz que tem "números de flagrante atualidade" e prometem-se "dois espetáculos de alegria"..Também o episcopado português, reunido em Fátima sob a direção do bispo de Aveiro, D. Manuel de Almeida Trindade, fazia saber que esperava que os acontecimentos "contribuam para o bem da sociedade portuguesa, na justiça, na reconciliação e no respeito por todas as pessoas"..Finalmente, à página 9, ganha espaço outra atualidade que não a voragem de liberdade que tomava conta do jornal. Os leitores do DN são informados de que Chaban-Delmas recebeu o apoio de um ministro na corrida presidencial francesa e que a mulher do embaixador espanhol em Oslo foi "estrangulada" na residência particular do casal na capital norueguesa. "Nada permite supor que se está na presença de um atentado político", dizia a polícia, mas um jornal local garantia que o diplomata "receava um ataque de "terroristas" bascos à embaixada ou a ela própria"..A Guerra Colonial afinal mata e Mário Soares regressa.Nesse dia 27, na página 14, entalado entre um anúncio de viagens e uma notícia de artes plásticas, há uma breve notícia que nunca se leu na semana anterior ao 25 de Abril: "Mortos ao serviço da pátria" - os soldados que lutavam nas colónias por teimosia da ditadura tinham afinal nome. Esta lista divulgada pelo Serviço de Informação Pública das Forças Armadas regista a morte "em combate" de seis soldados, todos eles nascidos nos territórios africanos..O regresso à normalidade faz-se com rostos que vão marcar a democracia: no dia 29 dá-se conta do regresso de Mário Soares a Lisboa, o líder socialista que "teve receção entusiástica," e da nomeação dos chefes dos três ramos das Forças Armada, um dos quais Pinheiro de Azevedo. A normalidade prevê a restrição nas "operações bancárias": os bancos estarão abertos apenas das 14.00 às 17.00 "tão-somente para atender às solicitações necessárias ao pagamento de remunerações de trabalho". Está-se no fim do mês, há salários a pagar..Lá fora, o novo regime conquista importantes reconhecimentos, pelos governos de Washington, Madrid, Paris e Bona, nota o DN de 30 de abril. E as eleições em França regressam à primeira página do jornal: "Chaban-Delmas redobra a violência dos ataques contra Giscard D'Estaing". No dia seguinte, 1 de maio, haverá "festa maior para os trabalhadores", com o novo feriado nacional. Alguém perguntou a Spínola se o 1.º de maio seria feriado, ao que o presidente da Junta de Salvação Nacional respondeu "e porque não"..O dinheiro racionado e o jornal em dia feriado.Nesse dia 1, o DN antecipa que a partir do dia seguinte estarão "normalizadas as operações bancárias". Mas, avisa-se, os "levantamentos de depósitos à ordem, em nome individual, não podem exceder dois mil escudos". Na última página dá-se conta de uma "sensação nos Estados Unidos": "O Presidente Nixon entregou as gravações das conversas sobre o caso Watergate" - e assim precipitaria o fim do seu mandato..No dia 2, o jornal não saiu para as bancas: o Dia do Trabalhador também foi feriado para os jornalistas. E no dia 3, com uma foto emblemática desse 1.º de Maio, de uma imensa multidão no estádio da FNAT (agora INATEL) e que hoje tem como nome essa data, o DN titula: "Afinal os portugueses estavam preparados para a democracia. A grande lição do povo. Impressionante demonstração de civismo de norte a sul do país. Entre flores, sorrisos e cantos milhões de corações celebraram o trabalho e a liberdade.".O carro temporário, os jeans livres e o nu de Brigitte.Em tempos de convulsão, a empresa de rent-a-car Avis desafia os hábitos de consumo: "Não empate o seu capital. Recorra à solução Avis: o carro temporário", lê-se num anúncio por estes dias. Para a Avis, esta é "a solução para quem precisa de automóvel e só pretende dele a comodidade e nunca ter maçadas"..Também uma marca de jeans faz da liberdade mote para um anúncio raro de página inteira: "Estas calças que entraram na história da América, inventadas em 1852 por Levi Strauss, são as que estão criando histórias hoje." Para a conclusão óbvia para um povo sedento depois de 48 anos de ditadura: "A vida é livre com Levi's.".Com o país a descobrir a liberdade, a ousadia toma conta das páginas do jornal. Sem motivo aparente, o DN publica no dia 28 duas fotos sensuais da atriz francesa Brigitte Bardot, numa delas despida, com uma longa legenda: "Os anos 50 foram decisivos na criação de vários mitos. Entre estes, o 'mito BB' foi um daqueles que mais sacudiram a opinião pública mundial. Brigitte Bardot e o 'filme-bomba' de Roger Vadim Et Dieu... Créa la Femme [E Deus... Criou a Mulher] foram charneiras. O primeiro nu aparece no cinema francês: é Brigitte.".Lá dizia Spínola na manchete do dia 28: "É importante consciencializar o país para que escolha o regime em que quer viver." Chama-se democracia, esse regime, o pior de todos os sistemas com exceção de todos os outros.