Estarão os democratas a salvar a democracia na América?

As eleições primárias no Partido Democrata, até agora, foram surpreendentemente moderadas, com Joe Biden a levar a dianteira forte contra Bernie Sanders.
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À primeira vista, estas pareciam as mais desinspiradas primárias dos últimos tempos, as dos democratas americanos. Vimos nestes dias um retrato sem alma de um partido que até tinha tido tempo de lamber as feridas da explosão Trump e reerguer-se. Imaginem a massa crítica, num país do tamanho dos EUA só com dois partidos. Não havia mais talento nas suas fileiras? Nem eram precisas mais ideias - que essas têm-nas estes candidatos (os que restam e os que desistiram). O que se pedia era aquela estranha conjugação de ideias, sonhos e determinação de que é feito o carisma. O que faz mover eleitores. E o mundo, já agora.

É Trump invencível? Parece isso que está a tentar provar o Partido Democrata. E tornou-se evidente nos debates em que se confrontaram como se fossem opositores um velho radical zangado, outro, meio tonto, sempre a fazer piadas com coisas sérias, uma mulher de meia-idade evidenciando todas os defeitos de que as mulheres costumam ser acusadas (que chata, professoral, superior, picuinhas, elitista...), outra mulher que não conseguia fazer-se ouvir porque acompanhava as suas frases de um sorriso doce, um milionário com um ar distante e auto-evidente, como se estivesse sempre a encolher os ombros, e um jovem articulado mas sofrendo de falta de notoriedade, que se acentuava na comparação com o friso de bastante mais velhos e experientes.

Esta análise é verdadeira, mas comporta uma certa injustiça com o Partido Democrata. A posição em que os deixou Trump não era fácil. Nunca seria fácil, porque foi muito além da política as usual, o que aconteceu, desde logo nas eleições de 2016, mas também o que se soube da forma como decorreram, das influências que tiveram, e tudo o que se tem passado desde aí.

O que faria na dura oposição (e em minoria na câmara alta) um partido com um presidente que não hesita em mentir, não joga com as mesmas armas nem civilidade, nem no discurso, nem na forma, nem na prática? Um exemplo? O discurso desta semana em que Trump acusa Warren de ser "má", justificando que as pessoas não gostam de "pessoas más" e por isso ela teve de desistir da corrida.

Isto no plano político. Mas também no plano ideológico, os democratas estavam, digamos assim, atados, num vínculo duplo. Que candidato haviam de escolher? Um tão radical como Trump, mas de sentido oposto, ou um que o combatesse no middle ground, no campo moderado do meio? Alguém que construísse muros e levantasse barreiras aos gritos ou um que acreditasse no esticar da mão para a outra bancada?

Nos últimos anos, os candidatos que granjearam mais atenção mediática foram os que escolheram a radicalização, Bernie Sanders e Elisabeth Warren. Tiveram mais palco e tinham ideias mais fortes para bradar - e conquistaram o jornalismo mais à esquerda, magoado com Trump, furioso com os seus ataques.

Mas, afinal, na vida real, os votantes democratas... escolheram o caminho do meio. Escolheram Joe Biden e deram-lhe a dianteira na super terça-feira desta semana. E esse resultado deu a volta à história - embora, os centros de sondagens já o tivessem previsto -, tornando estas primárias mais interessantes do que poderíamos pensar. Biden não inspira muitas emoções, não tem ideias revolucionárias, é um liberal dos quatro costados tanto nas questões sociais e culturais como na economia - mas é um candidato seguro, do sistema, conhecem-no bem os que seguem a sua vida pública há quase 50 anos (quando foi eleito senador pelo minúsculo estado do Delaware, já agora, um paraíso fiscal).

Sanders ainda não desistiu, é certo. Também não se sabe bem como será o ticket final. Muitas das ideias de Warren hão de ficar a marinar nas discussões, são sérias e falam de problemas sérios as suas sugestões de pôr o sistema financeiro na ordem (a sua bandeira), os impostos sobre a riqueza, a igualdade de género e a resolução do sistema de saúde partido (que o covid-19 há de pôr entretanto à prova). Ninguém consegue muito bem explicar porque é que os jovens não foram votar em Sanders, como se podia prever do seu apoio popular. Nem porque é que as mulheres que Warren terá conquistado não chegam para a eleger. Mas o que temos, para já, é a sensatez a vencer sobre a impetuosidade, o certo a ganhar ao incerto, o reformismo a sobrepor-se à proposta de uma revolução.

Não vale a pena encolher os ombros e deitar tudo para cima dos lugares-comuns sobre o conservadorismo social ou a falta de conhecimentos da população americana - até porque é a mesma que elegeu Obama e deu a maioria dos votos a Hillary. O que aconteceu foi que o partido democrata não virou à esquerda como o republicano virou à direita. Isso pode ter salvado a democracia na América, como diziam os comentadores mais assanhados na noite eleitoral? Ainda não sabemos. Mas vale a pena seguir o que vai acontecer - até porque é possível que daqui a uns anos tenhamos de usar deste lado as lições aprendidas do outro lado do Atlântico.

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