Não é por acaso que o rótulo de "filme de guerra" surge quase sempre associado às mais diversas abordagens da Segunda Guerra Mundial. De facto, foi através do tratamento do conflito de 1939-1945 que o género depurou as suas matrizes dramáticas, consolidando também o seu apelo universal..Não admira que haja toda uma memória coletiva do filme de guerra feita de muitos contrastes: do romantismo de Casablanca (1942), de Michael Curtiz, às evocações monumentais de Steven Spielberg, A Lista de Schindler (1993) e O Resgate do Soldado Ryan (1998); da memória imediata, intensamente realista, de Roma, Cidade Aberta (1945), de Roberto Rosselini, à dimensão espetacular de A Ponte do Rio Kwai (1957), de David Lean; sem esquecer, claro, a fundamental galeria de títulos documentais, nomeadamente na abordagem do Holocausto, em que se incluem clássicos como Noite e Nevoeiro (1955), de Alain Resnais, e Shoah (1985), de Claude Lanzmann..A lista que se segue opta por uma dezena de filmes mais ou menos "esquecidos", desde logo no plano comercial. Quase todos têm tido escassa visibilidade, sobretudo nas plataformas televisivas, ainda que, de um modo geral, estejam disponíveis em DVD ou Blu-ray. Não são os "únicos", nem se trata de os classificar como "melhores" - são apenas testemunhos de um património cinematográfico cuja grandeza física e importância simbólica justifica a nossa renovada atenção..A FAMÍLIA MINIVER (1942).Em meados de 1941, quando começou a rodagem desta produção americana sobre uma família britânica afetada pela guerra (Mrs. Miniver no original), os EUA continuavam a manter \u2028uma posição neutral face ao desenvolvimento da guerra. No final do ano, mais precisamente a 7 de dezembro, tudo mudou com o ataque japonês a Pearl Harbor: Hollywood investiu cada vez mais nas histórias direta ou indiretamente relacionadas com o conflito, de tal modo que o argumento de A Família Miniver foi mesmo reescrito em paralelo com as transformações da conjuntura política e militar. William Wyler, o realizador, era já um nome consagrado nas artes do drama intimista, tendo assinado, por exemplo, o lendário Jezebel, a Insubmissa (1938), com Bette Davis. A delicadeza emocional da sua visão transformou A Família Miniver num sucesso popular que teria eco nos Óscares: seis estatuetas douradas, incluindo melhor filme de 1942..FALTA UM DOS NOSSOS AVIÕES (1942).Na produção britânica sobre a guerra, a dupla Michael Powell/Emeric Pressburger (o primeiro inglês, \u2028o segundo de origem húngara) \u2028deixou um notável legado. Neste caso, trabalhando sob os auspícios do Ministério da Informação, realizaram um dos muitos títulos produzidos com o objetivo primordial de sustentar o moral da população face à agressão nazi. O título decorre da situação que desencadeia a ação: devido a uma avaria, um avião da Royal Air Forceé forçado a aterrar na Holanda, país então ocupado pelos alemães. A sobrevivência da tripulação é encenada com notável mestria dramática, pontuada por cenas dos aviões cuja sofisticação técnica era, na época, francamente inovadora..A SAGA DE ANATAHAN (1953).A história de Josef von Sternberg surge quase sempre reduzida aos filmes em que dirigiu Marlene Dietrich, a começar por O Anjo Azul (1930). O certo é que, entre outras maravilhas, ele nos deixou um dos títulos mais insólitos e perturbantes sobre a Segunda Guerra Mundial, o derradeiro da sua filmografia (ainda que o anterior, As Estradas do Inferno, rodado antes, só tenha sido lançado em 1957). O filme surgiu numa altura em que Sternberg já não gozava da proteção dos grandes estúdios de Hollywood. Estamos mesmo perante uma produção japonesa cujo ponto de partida chegou ao conhecimento de Sternberg através de uma reportagem da revista Life, publicada em 1951: no final da guerra, um grupo de japoneses à deriva no Pacífico vai parar à ilha de Anatahan; sem qualquer contacto com o mundo exterior, aí continuam a viver vários anos ignorando que a guerra acabou... A partir dessa situação de trágica ironia, Sternberg arquiteta uma verdadeira fábula sobre o poder, expondo o modo como o "naturalismo" do cenário favorece, afinal, o retorno dos protagonistas a modos primitivos de rivalidade e mútua destruição. \u2028É, ainda hoje, uma obra-prima de rara exposição pública..MORRER COMO UM HOMEM (1957).Retratista metódico das convulsões da história polaca, Andrzej Wajda dedicou uma trilogia a temas da Segunda Guerra Mundial, iniciada com Uma Geração (1955), sobre a juventude marcada pelos combates, e concluída com Cinzas e Diamantes (1958), refletindo o pós-guerra \u2028e as lutas pelo poder no interior do aparelho comunista dirigente. Morrer como Um Homem é o filme intermédio (título original: Kanal), tendo como principal cenário o sistema de esgotos de Varsóvia, usado pela resistência para escapar ao ocupante alemão. Particularmente impressionante é o realismo cru das filmagens dos esgotos, a preto e branco, apoiado num sofisticado trabalho com a luz - o diretor de fotografia, Jerzy Lipman, viria a ser responsável pelas imagens de A Faca na Água (1962), primeira longa-metragem de Roman Polanski..O JULGAMENTO DE NUREMBERGA (1961).Em 1947, nas zonas da Alemanha ocupadas pelos países aliados, cada um desses países promoveu julgamentos de responsáveis por crimes de guerra. O Julgamento de Nuremberga inspira-se diretamente nas sessões organizadas pelas autoridades dos EUA, ainda que envolvendo personagens fictícias. Trata-se de um caso exemplar de variação dramática sobre um modelo consagrado pelo cinema clássico e muitas derivações televisivas: o "filme de tribunal". Começou, aliás, por ser uma emissão televisiva do programa Playhouse 90 (CBS), tendo o respetivo argumentista, Abby Man, retomado as funções no filme produzido e realizado por Stanley Kramer. Como sempre, Kramer aborda temas fraturantes a partir de matrizes narrativas populares, mobilizando intérpretes muito conhecidos (em 1967, seria ele a assinar Adivinha Quem Vem Jantar, melodrama sobre as formas quotidianas dos preconceitos racistas). No caso de O Julgamento de Nuremberga, o elenco inclui, entre outros, Spencer Tracy, Burt Lancaster, Marlene Dietrich, Judy Garland e Montgomery Clift..DUELO NO PACÍFICO (1968).A sinopse do filme resume o seu poder simbólico: o duelo a que o título se refere envolve dois soldados, um americano, outro japonês, em plena Segunda Guerra Mundial; por circunstâncias mais ou menos inexplicadas, encontram-se numa ilha desabitada do Pacífico, protagonizando um confronto infernal (Inferno no Pacífico é mesmo o título original). Protagonizado por dois atores na época muito populares - Lee Marvin e Toshiro Mifune -, é um filme tão atípico quanto fascinante, dos mais originais na filmografia do seu realizador, o inglês John Boorman..O SARGENTO DA FORÇA 1 (1980).Entre os cineastas americanos que refletiram a experiência direta da guerra, Samuel Fuller é um dos mais importantes: além da participação em diversas zonas de combate, Fuller registou em película de 16 mm a libertação do campo de concentração de Falkenau, na então Checoslováquia. Embora a partir da década de 70 fosse uma figura cada vez mais secundarizada pelo sistema de Hollywood, nunca desistiu do projeto deste filme, refletindo, precisamente, a sua experiência enquanto soldado: o título original, The Big Red One, remete para a designação corrente da 1.ª divisão de infantaria que Fuller integrou. A intensidade emocional do filme - desembocando na descoberta dos fornos crematórios de Falkenau - é tanto maior quanto Fuller filma as suas personagens em tom de vibrante intimismo, como se se tratasse de uma "reportagem". Amputado em quase 50 minutos na altura da estreia, a versão integral só seria revelada na secção de Clássicos do Festival de Cannes, em 2004, sete anos depois da morte de Fuller..VEM E VÊ (1985).Reposto em cópia restaurada e editado em DVD em 2019, eis um verdadeiro monumento no interior da história dos filmes de guerra. Realizado por um dos nomes grandes do cinema soviético, Elem Klimov, nele se narra a experiência de um rapaz da Bielorrússia - interpretado pelo admirável Aleksei Kravchenko, então com 14 anos - que, ao descobrir as execuções perpetradas pelos nazis, vive uma experiência de crescente alucinação em que a própria noção de realidade é posta à prova. O realismo cru do filme inscreveu-o na história do cinema de forma dupla: como relato de uma guerra concreta e parábola universal sobre as fronteiras do fator humano..IMPÉRIO DO SOL (1987).Na base desta realização de Steven Spielberg está o romance de J. G. Ballard que, integrando algumas componentes autobiográficas, se centra na história de sobrevivência de Jamie, um menino num campo japonês para prisioneiros, durante a Segunda Guerra Mundial. Através dessa inspiração, não deixa de ser um dos filmes mais pessoais de Spielberg, encenando uma inocência perdida que a infância representaria face às atribulações da vida dos adultos. Daí a paradoxal respiração dramática de Império do Sol, oscilando entre a exposição da crueldade da guerra e a fábula redentora. Na altura com 12 anos, Christian Bale (futuro Batman) obteve o papel de Jamie num casting em que participaram mais de 4000 crianças..O PIANISTA (2002).Não é uma autobiografia de Roman Polanski, embora o facto de o realizador ter vivido parte da sua infância no gueto de Varsóvia não possa ser desligado da perturbante dimensão emocional deste filme baseado nas memórias do pianista Wladyslaw Szpilman (também sobrevivente do gueto). Saga pessoal e tragédia coletiva, O Pianista é também um exemplo modelar das potencialidades técnicas e artísticas da indústria cinematográfica europeia, tendo resultado de uma coprodução que envolveu França, Alemanha, Polónia e Reino Unido. Valeu Óscares a Polanski (realização), Adrien Brody (ator) e Ronald Harwood (argumento adaptado).