No dia 14 de agosto de 2017, Hugo Berenguilho Madeira abandonou a propriedade que tentava salvar das chamas, na aldeia de Castelo Novo, quando sentiu o calor queimar-lhe a pele, percebendo então que nada mais podia fazer para proteger o que lhe pertencia. A mulher esperava-o ansiosa na praia fluvial da aldeia e a imagem que guarda desse reencontro é a do marido, descontrolado, pontapeando a placa que assinala a inclusão da localidade na rede das aldeias históricas portuguesas.."Ele estava desorientado e só dizia: 'Isto é tudo uma fantochada. É culpa desta gente toda", diz Inês Berenguilho Madeira, repetindo as palavras com que Hugo expressou na altura o desespero. "Perdemos tudo. Perdemos tudo.".Na manhã seguinte, quando o casal regressou para dar conta dos estragos, ouviu o galo cantar, viu as galinhas vivas e o telhado da casa intacto. Inês sentou-se no chão a chorar de alívio.."Acho que o incêndio foi a paga de tudo o que tentámos fazer nesta aldeia," diz Hugo, ainda com raiva. Inês tem menos raiva, mais tristeza. "Eu acho que foi um abre-olhos para pensarmos que temos de nos dedicar apenas às nossas coisas", diz..O incêndio do ano passado, que lhes destruiu oito hectares de plantações agrícolas e significou um prejuízo de 20 mil euros, pôs a nu o ressentimento do casal, mas o rastilho já tinha sido aceso há algum tempo..Quando Hugo, que trabalhou como fotógrafo e viveu no Reino Unido e na Noruega, e Inês, que se licenciou em Arquitetura Paisagista, se conheceram, começaram a alimentar um plano de deitar raízes na terra, vivendo da agricultura biológica e do turismo rural, com a ambição maior de que pudessem servir de exemplo a outros jovens e a comunidades tradicionalmente esquecidas e abandonadas, contribuindo assim para atenuar a desertificação do interior do país..O casal comprou um terreno em Castelo Novo, mudou-se para a aldeia, candidatou-se a um financiamento Jovens Agricultores, apresentou ao presidente da Câmara do Fundão o projeto/associação Castelo Novo 2.0 para renovar a localidade, atraindo, através de uma bolsa de terras, jovens casais que quisessem dedicar-se à agricultura biológica e a outros negócios, criando mercados onde esses jovens pudessem vender de imediato o que produziam, abrindo uma escola que seguisse a pedagogia Waldorf para os filhos desses casais, desenvolvendo uma cooperativa de energia que ligasse e servisse as aldeias à volta..Era um plano para dinamizar a economia local através de um modelo alternativo, não assente na monocultura, mas na agricultura biológica em pequena escala. O presidente, dizem, ficou entusiasmado com as ideias do casal e cedeu-lhes o espaço do antigo forno comunitário para sede da associação, atribuindo-lhes uma avença mensal de 200 euros, para ajudar o projeto. O casal firmou também um protocolo com as Aldeias Históricas, para que o modelo pudesse ser replicado nas 12 localidades espalhadas pelo país..O projeto Castelo Novo 2.0 foi convidado pela Câmara do Fundão para participar na visita da rede Agri-Urban, um plano financiado pelo programa europeu URBACT III, para permitir a partilha de experiências entre cidades com forte ligação entre as dimensões urbana e rural. Em 2017, o encontro da rede ocorreu no Fundão e nessa ocasião, após a apresentação de Hugo e Inês, uma das representantes da delegação sueca disse-lhes: "Vai haver uma divisão entre os novos habitantes e a comunidade, estilo apartheid", lembra Hugo..Nada correu como o casal previa. A comparação algo excessiva da sueca revelou-se mais acertada (deixadas obviamente as devidas distâncias que comparavam qualquer divisão ao regime que vigorou durante anos na África do Sul). O projeto submetido em nome de Inês para um financiamento de 120 mil euros no âmbito do programa Jovens Agricultores foi reprovado com a justificação de que estava tecnicamente mal feito. Hugo diz que o chumbo se deveu tão-somente "à incompreensão total de um projeto diferente que não consistisse em monocultura de cereja"..A tentativa de integração na comunidade depois da apresentação do projeto ao presidente da Câmara do Fundão também saiu furada e o casal queixa-se da má vontade dos vizinhos, interpretando-a como inveja por aquilo que aos seus olhos provavelmente pareceria favorecimento por parte da autarquia. Hugo e Inês dizem que a comunidade lhes escondeu a chave do forno comunitário, que as guias turísticas evitavam propositadamente a sua loja de produtos durante as visitas, que a população fez quatro denúncias à ASAE a propósito das condições do bar da praia fluvial, que o casal explorou durante o verão de 2017 para conseguir fundos para investir no seu projeto agrícola..Mais recentemente, mas ainda na sequência de todos esses conflitos, Hugo e Inês falam de perseguição por parte da presidente da Junta da Freguesia de Castelo Novo, que em janeiro de 2018 terá mandado um funcionário destruir a vedação de acesso à propriedade por alegar que um dos terrenos para lá dessa vedação não pertence ao casal. Inês explica que o terreno está mal registado na conservatória e o casal diz ter um advogado a tratar da legalização..A presidente da junta fala do caso com igual revolta. Maria de Jesus Abelho diz ao DN que o casal colocou uma corrente a impedir a passagem num caminho público por onde os habitantes têm acesso a um percurso de caminhadas conhecido como o "caminho dos moleiros". Segundo a líder local, os habitantes de Castelo Novo queixaram-se à Junta de Freguesia, que depois pediu ao casal a apresentação da licença para bloquear o caminho. Licença essa que, diz, não existia. Foi por isso que se mandou retirar a tal corrente, diz Maria de Jesus Abelho, acrescentando que o juiz da comarca de Castelo Branco deu razão à junta, mesmo depois de o casal ter pedido recurso, encontrando-se o processo arquivado.."São pessoas que chegam de fora e acham que isto é tudo deles, e não pode ser porque aquilo que é público, é público", diz a presidente da junta, criticando a postura de Hugo e Inês. "São arrogantes, não têm humildade. Acham que as pessoas da aldeia são analfabetas, não têm cultura nem estudos. Podiam ter tentado perceber a cultura das pessoas, ir às suas festas religiosas, conversar com o povo... Essa teria sido a postura correta," diz Maria de Jesus Abelho. A presidente da junta acusa ainda o casal de a ter maltratado no dia em que o caminho foi retirado e a própria se encontrava presente. "Não sabem dialogar, fazem tudo à força. Fui maltratada a ponto de a Inês quase me pisar os pés com as rodas do carro," diz..Mateus Nunes, 61 anos, natural de Castelo Novo, é vizinho de Hugo e Inês e ecoa a irritação da presidente da junta.."Eles chegaram aqui e fecharam um caminho público, e um povo não pode aceitar pessoas desse tipo", diz. E, continuando o argumento de Maria de Jesus Abelho, Mateus critica a postura do casal. "As pessoas de Castelo Novo podem ter pouca cultura, mas vistas por eles os dois são uns animais. Se eles se portassem como deve ser, nada disto tinha acontecido. Há aí muita gente de fora que está bem", diz..A jovem Carolina Ramos, 23 anos, filha dos proprietários do Restaurante Lagarto, um ponto central na aldeia, tem assistido à tensão como "observadora". Carolina nasceu em Castelo Novo. É estudante e já viveu em vários pontos do país, o que lhe permite ver a situação colocando-se de fora.."Quando as pessoas da cidade se mudam para as aldeias há sempre mais situações a resolver do que aquilo que se pensa. Do lado daqueles que já estão, geralmente as ideias são fixas, não tão modernas. Aqueles que chegam têm muita vontade de dinamizar e esquecem-se de que a população está acostumada a pessoas diferentes. Ideias de veganismo e agricultura biológica são conceitos muito chocantes para a maioria dos habitantes. É necessário abordar a população de forma delicada", diz..O casal assume que quis fazer demasiado, demasiado rápido, mas continua sem encontrar paz. Hugo e Inês desistiram da avença com a Câmara do Fundão, fecharam a associação e continuam a pensar se abandonam ou não Castelo Novo.."O discurso de atrair gente para o interior é vazio. Ou são ingleses que são cidadãos perfeitos porque não votam e não questionam as decisões em assembleia municipal, mas pagam IMI, ou são jovens empreendedores que aceitam andar na linha e plantar cereja. É tudo tão sujo... E os incêndios são apenas um sintoma de todas estas dinâmicas. Se a nossa casa tivesse ardido, já não estaríamos em Castelo Novo. Mas depois chegamos aqui e sentimos a energia positiva da nossa casa e estamos apaixonados pelo sítio. Nós fomos inocentes pensando que conseguíamos mudar as coisas. Fomos tontinhos", diz Hugo..Casas vazias, impossíveis de alugar.Tiago Lucena e Cláudia Costa souberam que um dos incêndios do ano passado terminou a quatro quilómetros da casa que na altura estavam a alugar na Sertã. E foi o fogo que os fez voltar ao litoral.."Sentimos que é tudo gerido de forma surreal, caótica. Antes do incêndio estávamos a pensar investir ali. Depois percebemos que dentro de dez anos o fogo se repetiria e que perderíamos tudo", diz Tiago Lucena, 37 anos..Tiago trabalhou em publicidade e marketing até que a crise financeira de 2008 o levou a questionar a fundo a sua forma de vida. Em 2010, fez um curso de design e permacultura, que lhe "virou totalmente a cabeça", levando-o a olhar para os meios rurais de uma forma diferente "das fantasias utópicas de viver no campo" e das "visões salazaristas da fome", diz..A partir daí, Tiago começou a procurar uma forma de deixar a cidade, explorando a permacultura e a autossuficiência alimentar e energética e combinando essas atividades com serviços de comunicação e marketing através da internet. Seguindo a direção de outros amigos que estavam a rumar ao interior, Tiago e Cláudia viveram entre quatro aldeias no concelho de Góis, na serra da Lousã, e depois na vila da Sertã. O casal alugava hortas e, apesar da dificuldade em contactar os proprietários das várias casas vazias nas aldeias, lá ia conseguindo alugar um espaço onde viver. Ou então pediam um quarto a um habitante, como aconteceu na aldeia de Caselhos, onde ficaram a viver com uma idosa que, após a desconfiança inicial, os recebeu como parte da família. Tiago e Cláudia dizem que sempre se sentiram estimados pelas pessoas que foram encontrando, que queriam ajudá-los e ensiná-los nas suas experimentações agrícolas, mostrando-se também interessados em discutir as ideias que Tiago tem para o mundo rural em Portugal.."Cada aldeia tem um encaixe geográfico único, com variedades regionais e produções específicas, mas o paradigma que existe neste momento é baseado na monocultura, sendo mais fácil receber subsídios para isso. O que fazia sentido era apostar em pequenas produções, apostar na biodiversidade, na autossuficiência. Se organizássemos as aldeias tendo em conta as suas especificidades e as sustentássemos em cooperativas que pudessem escoar as produções, transformando os produtos da terra e combinando essa atividade com serviços como o turismo rural e a hotelaria, isso seria o ideal", diz Tiago, que foi sempre encontrando quem o compreendesse. "As aldeias e as vilas estão cheias de gente sábia e com experiência de vida que entende este caminho", diz..Era da parte do poder autárquico que Tiago não conseguia respostas. Quando contactou o presidente da Câmara da Sertã sobre a impossibilidade de alugar casas apesar da abundância de casas vazias e da quantidade de casais que Tiago e Cláudia conhecem no litoral que gostariam de fazer a transição para o interior, recebeu silêncio, conta.."Os autarcas podem dizer o que quiserem sobre os benefícios de viver no interior, mas não é a oferecer dois mil euros para estares dois anos em Vila Velha de Ródão ou na Pampilhosa da Serra. Há muita gente que quer abraçar o campo e, se houvesse modelo como aquele que eu descrevi, criava-se comunidade e todos os serviços necessários, revitalizando-se o mundo rural. Mas há uma vergonha em assumir a ruralidade e os planos de desenvolvimento do interior são planos urbanos. O que é necessário é reinventar a ruralidade para o século XXI. Não se trata de levar Portugal para o século passado, mas não há país desenvolvido que não tenha na sua espinha dorsal a agricultura", adianta..Tiago continua interessado em explorar a agricultura biológica e a permacultura, mas os incêndios do verão de 2017 fizeram-no desistir do interior. Um amigo emprestou-lhes uma quinta na região do oeste, que atraiu Tiago pela proximidade ao mar.."Agora, quero ganhar noção da pesca artesanal e da relação das aldeias com o mar como ganhei conhecimentos sobre a agricultura e a serra", afirma, alimentado pela vontade de fazer aquilo que diz faltar fazer em Portugal - mapear o país para saber o que se devia fazer em cada zona para ter os melhores resultados.."Já somos mais felizes cá".O projeto de produção biológica apresentado por Luís Salavessa para um terreno na aldeia do Ladoeiro, concelho de Idanha-a-Nova, foi questionado porque a Direção Regional de Agricultura e Pescas (DRAP) não percebeu como era possível desenvolver um projeto agrícola num espaço tão pequeno. Foi pedida a Luís uma garantia bancária de 175 mil euros para um projeto de 75 mil, mas ele e a mulher, Margarida Trêpa, estavam prestes a ser pais e consideraram o risco demasiado elevado e desistiram..Sobre a avaliação do projeto, Luís tem uma análise semelhante à que Hugo e Tiago fazem dos financiamentos agrícolas em Portugal.."Estamos muito agarrados às culturas e produções do passado", diz. Além disso, Luís acha também que um local teria tido mais facilidade em fazer a candidatura e conseguir a aprovação da mesma por saber melhor as regras e aquilo que se espera na apresentação de um projeto agrícola. "É um mundo muito fechado", diz.."Na prática, os apelos dos autarcas não vão ao encontro dos que fazem o movimento de vir da cidade para o interior. Não se pensa nas pessoas que querem mudar de vida e está feito para quem já tem terrenos", diz Margarida..Neste momento, o plano que Luís e Margarida tinham quando se mudaram de Sintra para uma casa herdada da família de Luís, na aldeia de Cebolais de Cima, concelho de Castelo Branco, desapareceu, não tendo ainda sido totalmente substituído pela alternativa B, o espaço de turismo rural que estão a criar. Luís, que trabalhava em marketing e publicidade e tinha um ginásio no Restelo, gere agora uma loja online de venda de produtos regionais. Margarida, que se licenciou em Psicologia e trabalhou numa livraria em Lisboa, não conseguiu ainda encontrar trabalho, algo que atribui em parte ao mesmo fechamento do meio que Luís aponta.."Tenho procurado emprego, mas, como já me disseram uma vez, 'a menina precisava de alguém que lhe abrisse uma porta'. Nestes meios pequenos é difícil", diz a psicóloga..O casal diz que as dificuldades de integração são reais, que a burocracia não ajuda e que há cusquice e alguma intromissão nas suas vidas. Mas, apesar de o projeto agrícola não ter corrido como desejavam, não consegue queixar-se. Foi nos Cebolais que conseguiram finalmente ter filhos e é nos Cebolais que querem estar.."Quando voltamos a Sintra de férias, pouco tempo conseguimos lá estar. Desabituámo-nos. Somos felizes cá e não lá. O que se vive lá faz-nos mal", diz Margarida.