Com um humor que jamais dispensava a farpa social, Charlie Chaplin filmou, em 1936, a cruel sátira da relação do Homem do século XX com o seu local de trabalho. Chamou-lhe Tempos Modernos e ambientou-a na linha de montagem de uma fábrica, onde os operários eram submetidos a um nível, até aí inédito, de stress. Para o antropólogo social James Suzman, a atualidade desta mensagem permanece, já que a automação crescente da nossa economia ainda não transformou a nossa relação, por vezes obsessiva, com o trabalho. No seu livro Trabalho - Uma História de como utilizamos o nosso tempo (ed. Desassossego), Suzman traça-nos uma grande história do trabalho desde as origens da vida até ao presente, desafiando algumas das convicções mais arraigadas acerca da nossa identidade individual e coletiva, como aquela que nos leva a olhar com sobranceria os caçadores recoletores de outras eras e latitudes. Nascido na África do Sul, o autor estudou durante largos anos algumas populações de bosquímanos da região da Namíbia e demonstra, por exemplo, como temos algumas lições a aprender com estes povos que proviam ao seu sustento sem, no entanto, ameaçar a sustentabilidade do ecossistema..A pandemia impôs a milhões de trabalhadores e empregadores em todo o mundo uma nova realidade, a do teletrabalho. A nossa relação com o trabalho estará diferente quando a pandemia for, finalmente, declarada extinta? Penso que tem sido uma experiência transformadora por várias razões mas, na verdade, veio acentuar de forma dramática uma transformação que vinha já a acontecer nas últimas duas décadas. Recorríamos cada vez mais a máquinas, a sistemas digitais, mas curiosamente, apesar dessas mudanças, a nossa relação física com o posto de trabalho permanecia, de forma geral, inalterada. Mas foi graças a essa automação crescente que, apesar da gravidade da situação, a economia não colapsou, os serviços essenciais não deixaram de funcionar, as nossas necessidades essenciais não deixaram de ser asseguradas..Porque é que há essa relutância à mudança? Antes de mais porque o trabalho ainda é visto como uma virtude moral e a sua ausência, uma falha. Mesmo que isso signifique que ainda há uma imensa maioria de pessoas que trabalham apenas para assegurar a subsistência sem que, na verdade, aquele trabalho lhes traga qualquer alegria ou sequer sentido de realização pessoal. Mas as mudanças estão a acontecer. Há 50 anos as pessoas iam maioritariamente para fábricas, para as minas, para produzir bens. Hoje, nas economias dos países desenvolvidos, a maior parte do trabalho está concentrado no setor dos serviços..Em que momento da História é que passou a haver essa associação moral entre trabalho e virtude? Acentuou-se muito com a Revolução Industrial, ou ainda um pouco antes dela, quando o aumento da produtividade agrícola, o aumento correspondente na manufatura artesanal e a importação de novidades exóticas, como linhos, porcelanas, marfim, plumas de avestruz, especiarias e açúcar das colónias desencadearam os princípios de uma revolução de consumidores na Europa. Mas importa recuar ainda mais. Há cerca de 12 mil anos, quando alguns dos nossos antepassados começaram a armazenar alimentos de uma forma regular e constante e a fazer experiências agrícolas, transformando não só a sua vida, como a relação com o ambiente, com a escassez de stocks e com o trabalho. Percebemos então que muita da nossa organização do trabalho nasceu com a agricultura. Um outro momento de transformação ocorreu quando as pessoas começaram a confluir para cidades e vilas. Aconteceu há perto de 8000 anos, quando certas sociedades começaram a gerar excedentes alimentares suficientes para sustentar grandes populações urbanas. Com o nascimento de uma vida urbana tivemos a origem de um novo leque de aptidões, ofícios, empregos e profissões que não teriam lugar numa sociedade completamente agrícola ou de caça e recoleção. Há outra consequência desta mudança: uma vez que os agricultores proviam a maioria das necessidades materiais das pessoas de vilas e cidades, estas concentraram-se na procura de posição social, riqueza, prazer, lazer e poder. As cidades rapidamente se tornaram centros de desigualdade, processo esse acelerado pelo facto de, dentro das cidades, as pessoas não estarem vinculadas à mesma familiaridade e aos mesmos laços sociais característicos das pequenas comunidades rurais. Por conseguinte, os habitantes das cidades começaram cada vez mais a atribuir a identidade social do próprio trabalho e estabelecer comunidades com quem tinha o mesmo ofício, em detrimento dos antigos laços de vizinhança..Temos lições a retirar das sociedades tradicionais, baseadas na agricultura não intensiva? Temos lições a extrair e de natureza diversa. As sociedades tradicionais, baseadas na agricultura, fosse na Europa, na China ou Índia, eram muito diferentes das de hoje. Basta pensarmos que a principal fonte de energia, quer de seres humanos, quer de animais, era a alimentação. Na sociedade industrial, em que cada vez maior número de pessoas vivia nas cidades vivia em condições terríveis, esta orgânica multissecular alterou-se. Por outro lado, nessas sociedades tradicionais, a vida comunitária tinha um peso considerável, pelo menos desde os romanos, com as suas ágoras. Assim continuou a ser na Idade Média. Mas na sociedade industrial, a origem da identidade passou a estar ligada ao trabalho, mesmo que este não seja compensador nem torne feliz quem o executa. Do mesmo modo, temos lições a extrair ao nível da sustentabilidade ambiental. Estamos, neste momento, a meio da quarta revolução industrial, nascida de um leque de tecnologias digitais e dizem-nos que será exponencialmente mais transformadora do que as anteriores. No entanto, para além de haver cada vez mais automação em tarefas realizadas em fábricas, empresas, escolas, serviços e mesmo em casa, vemos que as desigualdades subsistem, o que gera muita inquietação social. É impossível não ver aqui um forte paralelismo com o que aconteceu na Europa nas décadas de 30 e 40. A um período de superprodução sucedeu a Queda da Bolsa de Nova Iorque, um aumento temível do desemprego e gerou-se um clima de insegurança favorável aos populismos..Passou longos anos a estudar a vida dos bosquímanos da região da Namíbia, de que, aliás, fala bastante no livro. Em matéria de sustentabilidade, eles têm coisas para nos dizer? São sociedades em que a preocupação constante com o futuro não existe, enquanto nós vivemos obcecados com a acumulação. Nunca estamos satisfeitos e isto não se aplica apenas à comida. Hoje sabemos que os caçadores-recoletores não viviam permanentemente à beira da privação. Pelo contrário, tinham boa nutrição; viviam mais do que as pessoas na maioria das sociedades agrárias, raramente trabalhavam mais do que 15 horas por semana. Sabemos também que o podiam fazer porque não armazenavam regularmente alimento, pouco se importavam com a acumulação de riqueza ou posição social e trabalhavam para suprir necessidades materiais a curto prazo. Na verdade, os nossos antepassados não se preocupavam com a escassez como nós. No entanto, somos muito mais prósperos do que alguma vez fomos..Que povos são estes? Sabemos que os recoletores da região do Calaari são descendentes de um único grupo populacional que viveu continuamente na África austral, desde o primeiro aparecimento do Homo Sapiens moderno, possivelmente há 300 mil anos anos. A caça e a recoleção são, de longe, a abordagem económica desenvolvida durante mais tempo desenvolvida pela humanidade. Claro que esse modelo não é uma hipótese viável para nós, mas essas sociedades dão-nos pistas para lidar com certos problemas como uma economia baseada no terror da escassez e, sobretudo, no consumo desenfreado. Recordam-nos que a nossa atitude contemporânea para com o nosso trabalho é, não só descendente da transição para a agricultura, mas também da nossa migração para as cidades. Também nos ensina que que a solução para viver bem depende de moderarmos as nossas aspirações pessoais de consumo e de combatermos a desigualdade..Aborda a Economia do ponto de vista da sua disciplina, a Antropologia Social. Até que ponto esta constitui uma ferramenta para a intervenção nas sociedades? Temos de pensar, antes de mais, que a cultura é uma força poderosa, que não pode ser, pura e simplesmente, ignorada pelas políticas públicas ou privadas. O que a Antropologia Social, como outras ciências sociais, fornece é uma perspetiva diferente, crítica, dos problemas. Expande o leque de respostas aos problemas de organização da sociedade, para que as pessoas passem menos horas no trabalho, por exemplo, para que se desenvolvam mais harmoniosamente, menos centradas no consumo que está a arruinar o planeta. Permite que sejamos mais imaginativos..dnot@dn.pt