"Os atores mais conhecidos são mais frágeis"

Foi no Rendezvous do Cinema Francês que Annes Fontaine explicou ao DN o que quis fazer com <em>Police-Turno da Noite</em>, drama sobre os valores morais da polícia. O filme chega amanhã aos cinemas depois da presença no Festival de Berlim. Omar Sy e Virgine Efira são as estrelas de serviço.
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É com algum atraso que chega aos cinemas nacionais este Turno da Noite, apresentado na Berlinale em 2020 fora de competição, um tocante melodrama ambientado numa viagem de três polícias que entregam um migrante ilegal prestes a ser deportado. Nessa noite, três polícias decidem o destino de um homem que ao chegar ao seu país será morto. Um dilema que mexe com a consciência de cada um deles. A meio caminho percebem que ao cumprir essa missão estão literalmente a sentenciar o detido para um destino fatal. Baseado no romance de Hugo Boris, o filme retrata de forma fina a complexidade das relações pessoais e laborais entre os três polícias. Um trabalho seguro e duro de uma cineasta que compreendeu os tempos sensíveis de um jogo de atores onde se destaca o cativante Grégory Gadebois. Mais uma prova da versatilidade de Anne Fontaine (Agnus Dei- As Inocentes), autora que sempre quis fazer um cinema ancorado no trabalho dos atores e no labor dos argumentos com dilemas morais relevantes. Uma cineasta que estudou no Liceu Francês de Lisboa e que depois deste filme já estreou em França Présidents, uma fantasia sobre uma campanha eleitoral.

Há aqui um olhar a mostrar a polícia francesa no seu interior...É um olhar que foge aos arquétipos das convenções do próprio policial...

O que quis, acima de tudo, foi mostrar três personagens condicionados por uma função. Pessoas calibradas para agir de uma determinada maneira. Este filme é baseado no livro de Hugo Boris e o que é belo nessas páginas passa pela proposição de através do íntimo chegarmos a uma aventura humana, nomeadamente através da vulnerabilidade desta mulher polícia. Police não é um filme sobre a polícia, é sobre seres humanos. O tema é existencial e perturba muito.

Mas o que lhe interessou mesmo explorar?

A ambiguidade destes polícias, mesmo pensando que todo o ser humano é ambígua. Sou uma cineasta sempre interessada na condição humana e aqui mostro pessoas que têm de pensar se são capazes de agir para além da sua função. Costumo abordar os temas mais variados mas frequentemente acabo nas questões da transgressão. Estes polícias deparam-se com a hipótese da desobediência para ficarem mais próximos de algo humano, logo eles que não estão preparados para estarem próximos...A vulnerabilidade deles é maior quando são obrigados a questionar. Quis fazer um filme sobre a polícia sem ser policial ou de ação - é antes algo metafísico, um inquérito existencialista perturbador.

Citaçãocitacao"Quis fazer um filme sobre a polícia sem ser policial ou de ação - é antes algo metafísico, um inquérito existencialista perturbador", Anne Fontaine.

Nesta altura acredita que a polícia francesa é composta por novas pessoas, por gente com outra mentalidade?

No comissariado onde estive a trabalhar uma semana vi uma variedade grande de pessoas e percebi que cada vez mais o número de mulheres aumenta. Creio em França as força policiais já são compostas por mais de 30 % de mulheres e isso muda um pouco as coisas...Apesar de ter encontrado polícias homossexuais, estamos num meio que permite pouca liberdade e onde não se consegue encontrar muita individualização. Esta minha história aborda quando a consciência individual pesa sobre um polícia e neste caso joga um papel determinante. Neste minha pesquisa encontrei pessoas fascinantes, até um polícia que estudou filosofia.

Deu o título Police a este filme mas o cinema francês tem também o Police, de Maurice Pialat. Há uma ligação entre os filmes?

Voilá! O que se passa é que o Police, do Pialat, é formidável, mas o meu tem uma outra maneira de abordar o tema da polícia. Sabe, tentei encontrar um outro título mas depois percebi que Police engloba uma aura de mistério e eu queria algo que não convocasse a psicologia ou que falasse da emigração ou da boa agente policial...

Aqui dirige dois dos nomes mais conhecidos do cinema francês, Virgine Efira e Omar Sy. Muda algo quando se trabalha com grandes stars ou não deixam apenas de ser atores?

Para mim o que importa é que são atores muito bons. Escolhi estes em função de acreditar que poderiam dar o contacto mais próximo entre as personagens e a plateia. Quando o público conhece os atores a identificação é maior. Trabalhei com eles da forma mais romanesca possível. Para um filme resultar o mais importante é a escolha dos atores e a Virgine Efira é uma mistura de luz com sensualidade e, ao mesmo tempo, com uma finura irrepreensível na interpretação, ao passo que Grégory Gadebois é um dos mais espantosos atores do cinema francês. Quanto ao Omar Sy eu não o conhecia e, ao olhar para a sua cara, ficava com pena de aquele rosto não nos dar algo diferente daquilo que habitualmente vemos nos seus filmes. Fiquei muito tocada por ele. Aliás, os atores mais conhecidos são mais frágeis, quanto mais conhecidos maior receio têm da sua queda!

Tem defendido que cinema em grande ecrã é uma coisa muito diferente do visionamento em casa...

Sim, passa por um olhar diferente. Ver cinema fora da sala não tem a mesma magia...No grande ecrã temos uma fusão. Não desprezo a hipótese de ver filmes em casa mas não deixa de ser algo superficial.

dnot@dn.pt

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