É o maior castigo de sempre da história do desporto, uma medida sem precedentes. A Agência Mundial Antidopagem (AMA) baniu a Rússia de todas as competições internacionais durante quatro anos, uma decisão tomada por unanimidade pelos 12 membros do órgão na sequência dos escândalos de doping entre 2011 e 2015 que tiveram o apoio estatal e que foram tornados públicos há cerca de seis anos..A Rússia pode recorrer desta decisão para o Tribunal Arbitral do Desporto (TAS) - tem 21 dias para o fazer -, mas são poucos os que acreditam numa reviravolta nesta decisão inédita dada a clareza dos factos imputados. A própria AMA considerou que dificilmente o TAS anulará os quatro anos fora das competições internacionais. "Se a decisão for deliberadamente adiada para que não afete os Jogos Olímpico de Tóquio, em 2020, será cumprida em Paris 2024. Cabe aos russos decidir em quais Jogos Olímpicos querem participar", disse em conferência de imprensa Jonathan Taylor, do Comité de Revisão de Conformidade da AMA..Isto significa que o país corre mesmo sérios riscos de ficar de fora dos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020 (verão), dos Jogos de Inverno de Pequim (2022) e do Mundial de Futebol do Qatar (2022), entre outras competições mundiais ou continentais organizadas por organismos signatários do Código Mundial Antidopagem, como são, por exemplo, as federações internacionais de modalidades. Além disso, durante quatro anos, a Rússia não pode também candidatar-se à organização de eventos nos quais esteja proibida de participar..Esta decisão põe em causa a participação de vários atletas em competições importantes, muitos deles desportistas de topo e candidatos a medalhas. Os atletas que quiserem participar nestas competições só o poderão fazer sob bandeira neutra, e neste caso terão de provar que não estão envolvidos nos programas de doping descritos no relatório McLaren, levados a cabo entre 2011 e 2015, ou que as suas amostras não foram falsificadas..Competir como atleta neutro é a solução.Do atletismo, à natação, passando pelo ténis, a ginástica e o andebol, são vários os atletas russos em risco ou que terão de competir sob bandeira neutra. É o caso de Maria Lasitskene, de 26 anos, provavelmente o maior rosto do atletismo russo da atualidade, tricampeã do mundo de salto em altura, que já anunciou que vai competir como atleta neutra, como aliás já o fez no passado.."Não duvidava que este ia ser o desfecho. Não acreditava nas histórias de que tudo ia acabar bem. O que aconteceu hoje é uma vergonha", reagiu Lasitskene através das redes sociais, anunciando que vai continuar a competir como atleta neutra, ela que há muito tempo se tem mostrado bastante crítica com as autoridades russas. "Os meus planos para o futuro? Lutar por mim mesma e competir. Nunca tive intenção de mudar de cidadania e não o vou fazer agora. Demonstrarei em pista que os desportistas russos estão vivos, ainda que seja na qualidade de neutros. É o que fiz nos últimos anos", garantiu..No atletismo russo há mais dois nomes a ter em conta. Sergey Shubenkov, atleta com currículo nos 110 metros barreiras, campeão do mundo em 2015 e bicampeão europeu da distância (2012 e 2014), que é visto como um dos grandes rivais de Orlando Ortega para lutar por medalhas em grandes competições. E ainda Anzhelika Sidorova, do salto com vara, que já neste ano, em Doha, como atleta neutra, sagrou-se campeã do mundo..A sanção imposta pela AMA pode também pôr em sério risco o reinado da Rússia na natação sincronizada, onde o país é um potência desde os Jogos Olímpicos de Sydney 2000, apesar de em 2017 ter perdido uma das suas melhores atletas, Natalia Ishchenko. Também a natação pode sofrer um duro revés. Ainda recentemente, nos Europeus de piscina curta disputados em Glasgow, na Escócia, Vladimir Morozov conquistou sete medalhas de ouro e Kliment Kolesnikov outras seis. Os dois nadadores ou irão como neutros ou têm o sonho olímpico arruinado..Outro atleta que pode ver a participação nos Jogos de Tóquio 2020 adiado é o tenista russo Daniil Medvedev, 23 anos, atual número 5 da hierarquia mundial, que teve um ano de 2019 espetacular e que era um dos candidatos ao ouro nas olimpíadas do próximo ano, depois de ter chegado à final do US Open e conquistado o torneio de Xangai. Ainda no ténis, mas em femininos, a dupla Ekaterina Makarova e Elena Vesnina dificilmente conseguirá repetir o ouro conquistado no Rio 2016..Também na ginástica, a Rússia irá sofrer baixas numa modalidade em que habitualmente costuma dominar na vertente rítmica e em que é uma das potências na artística, tanto em masculinos como em femininos. O mesmo se aplica à equipa de andebol feminina, que há quatro anos, no Rio de Janeiro, foi medalha de ouro - tem ainda quatro títulos mundiais e foi também ouro olímpico em 2008..Por fim, o futebol. Apesar de a presença da seleção russa no Euro 2020 estar assegurada, até por ser um dos países anfitriões da prova (São Petersburgo é uma das sedes), o mesmo já não deverá acontecer no Mundial do Qatar de 2022 (apesar de poderem realizar a fase de qualificação). A não ser que, como considerou a AMA, seja estabelecido um mecanismo para que o faça de maneira neutra, sem competir sob a bandeira e as cores da Rússia. Um duro revés para jogadores como Golovin (Mónaco), Dzyuba (Zenit), Guilherme e Miranchuk (Lokomotiv) e Mário Fernandes (CSKA). A FIFA anunciou nesta segunda-feira que vai contactar a AMA no sentido de esclarecer as consequências deste castigo nas competições de futebol..O químico louco que ajudou a denunciar o caso.As suspeitas sobre um complexo e elaborado esquema de doping que incluía apoio estatal surgiram precisamente há seis anos, em dezembro de 2014, quando a cadeia de televisão alemã ARD emitiu um documentário onde era denunciado um esquema de doping generalizado, com base em gravações secretas e testemunhos. Quase um ano depois, uma comissão independente da AMA liderada por Richard McLaren e Dick Pound elaborou o famoso e explosivo relatório em que era desmontado o complexo esquema e recomendava a suspensão da federação de atletismo russa..A partir daqui começaram as sanções. O laboratório russo foi suspenso de atividade, assim como a federação de atletismo e a agência russa antidoping. Em maio de 2016, Grigory Rodchenkov, antigo diretor do laboratório, denunciou várias práticas numa grande entrevista ao jornal The New York Times, confessando manipulações sistemáticas de amostras nos controlos feitos a atletas nos Jogos de Inverno de Sochi em 2014, revelando que 15 vencedores de medalhas estavam dopados, tudo feito com apoio estatal..Grigory Rodchenkov acabou por ser uma figura central neste processo, o traidor arrependido que com as suas revelações ajudou a desmontar este complexo esquema de doping. Um químico com fama de louco, génio da farmacologia, que durante anos presidiu ao laboratório russo antidoping e que se tornou depois o garganta funda deste caso, encontrando-se atualmente inserido no programa de proteção de testemunhas dos Estados Unidos..O seu nome começou desde muito cedo a ser associado ao doping. Em 2011, quando já era o homem forte do laboratório russo antidoping, foi investigado juntamente com a irmã, a ex-atleta Marina Rodchenkov, pela venda de substâncias dopantes a atletas russos de várias modalidades. Mas acabou por ser ilibado de todas as acusações. Nesse mesmo ano terá tentado colocar termo à vida e foi internado num hospital psiquiátrico - ele escapou à prisão, a irmã esteve um ano e meio detida..Em 2015, após ser contactado por um jornalista britânico que fez um trabalho de investigação, o Comité Olímpico Internacional chamou Rodchenkov, que admitiu ter estado envolvido num elaborado esquema de doping e que tinha destruído 1147 amostras para reduzir o impacto das descobertas. No final desse mesmo ano fugiu para os Estados Unidos, coincidindo esta fuga com as mortes de dois outros antigos responsáveis da Agência Antidoping da Rússia..Em solo americano, e num programa de proteção de testemunhas, no início de 2016 contou numa extensa entrevista ao jornal The New York Times todos os podres do esquema de doping, garantindo ao mesmo tempo que os Serviços de Segurança Federais russos sabiam de tudo e ajudaram mesmo a esconder o esquema que estava montado há anos.."A Rússia tem recusado aceitar responsabilidade. O meu antigo chefe Vitaly Mutko, um vice-primeiro-ministro e antigo ministro do Desporto, negou de forma repetida ter conhecimento das minhas atividades como diretor do Centro Antidoping de Moscovo, quando supervisionei o programa de doping russo com a ajuda de vários agentes da antiga KGB e muitos oficiais do governo. Se alguém acredita que poderia ter feito tudo isto sem o conhecimento e apoio do ministro do Desporto é porque não sabe nada sobre a Rússia (...) Isto é uma caça às bruxas e eu sou a bruxa. Mas sejamos também claros: os atletas russos dopados são também, de variadas formas, vítimas", escreveu num artigo publicado no The New York Times..A partir daqui começou uma sucessão de acontecimentos, com o famoso relatório McLaren enviado para a AMA a assegurar que o estado russo estava ao corrente de tudo o que se passava a nível de doping e que tinha adulterado amostras de atletas presentes nos Jogos Olímpicos de Inverno de Sochi. Como consequência, o Comité Olímpico Internacional (COI) decidiu suspender toda a comitiva russa que ia participar nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro em agosto de 2016..O relatório McLaren e os esquemas.A segunda parte do relatório McLaren foi apresentada em dezembro de 2016 e assegurava que mais mil desportistas russos de 30 desportos diferentes estavam implicados no esquema que era patrocinado pelo estado. Em 2017, o COI suspendeu o Comité Olímpico russo e informou que só permitiria que atletas limpos pudessem competir sob bandeira neutra e o vice primeiro-ministro Vitaly Mutko, implicado no escândalo, foi demitido..A segunda parte do relatório McLaren foi demolidora, apontando para mais de mil casos de atletas russos beneficiados pelo esquema de manipulação dos resultados antidoping, o qual contava "com a participação do ministro dos Desportos e de serviços como a Agência Russa de Antidopagem [Rusada], o laboratório antidoping de Moscovo e os serviços secretos"..O advogado canadiano esmiuçou ao pormenor várias das práticas levadas a cabo pelas autoridades russas para encobrirem o doping dos atletas. Além do insólito caso das hoquistas com ADN masculino, os investigadores encontraram outras amostras de urina com sal e café, utilizadas para disfarçar as substâncias dopantes. Outras amostras mostravam diferenças de ADN em relação a amostras anteriores do mesmo atleta. E outras misturavam mesmo diferentes ADN na mesma amostra..Richard McLaren não tinha dúvidas: "Durante anos, várias competições desportivas internacionais foram sequestradas pelos russos. Treinadores e atletas tiveram de competir de forma desigual e desleal. Adeptos e espectadores foram enganados.".O advogado deu o exemplo de Londres 2012, onde os russos conquistaram 21 ouros, 20 pratas e 31 bronzes. "A Rússia corrompeu os Jogos de Londres numa escala sem precedentes e cuja dimensão provavelmente nunca saberemos por inteiro", disse, referindo-se ao desaparecimento de provas e até de testemunhas. O relatório apontava, por exemplo, que 15 medalhados de Londres estiveram implicados neste esquema de dopagem e que amostras de urina de 12 medalhados de Sochi 2014 foram manipuladas..Há também relatos de que os serviços secretos russos terão infiltrado no laboratórios dos Jogos Olímpicos de inverno de Sochi (Rússia, 2014), onde eram efetuados os controlos antidoping, um agente disfarçado de canalizador que roubou amostras de urina de atletas que poderiam acusar o consumo de doping e as substituiu por outras "limpas"..O primeiro-ministro da Rússia, entretanto, classificou nesta segunda-feira como uma "histeria antirrussa" a exclusão do país das maiores competições desportivas mundiais durante quatro anos. "Todas estas decisões são repetidas e contra atletas que já foram punidos (...). Faz-me pensar que existe aqui uma histeria crónica antirrussa", disse Dmitri Medvedev, citado por agências noticiosas russas..O governante disse esperar que "os órgãos desportivos competentes" recorram para o Tribunal Arbitral do Desporto (TAS) da decisão anunciada pela Agência Mundial Antidopagem (AMA), mesmo considerando que "existem problemas de doping no desporto do país"..Já Grigory Rodchenkov, o antigo chefe do laboratório antidopagem de Moscovo que ajudou a denunciar o caso, congratulou-se com a decisão da Agência Mundial Antidopagem (AMA). "Há muito tempo que esperava a decisão de hoje, que reconhece que a Rússia não tem cumprido com o Código Mundial Antidopagem", afirmou Rodchenkov, num comunicado, em que exulta a "punição de fraude, mentiras e falsificações de proporções inimagináveis".