Pergunta de algibeira: quem é o Mozart da história do cinema? Pergunta perversa, entenda-se, já que através da sua simples formulação podemos estar a alimentar esse velho preconceito que, encarando o cinema como uma arte descartável, exige que os seus valores sejam definidos, e até legitimados, através de referências vindas de outras artes. Em todo o caso, permito-me avançar com a minha resposta: Jean-Luc Godard. Acrescentando uma humilde mensagem de joyeux anniversaire - Godard nasceu em Paris, no dia 3 de dezembro de 1930, quer dizer, completa 90 anos na próxima quinta-feira..Para os cinéfilos portugueses que começaram a frequentar as salas escuras nas décadas de 1950/60, o seu Pedro, o Louco (1965), com Jean-Paul Belmondo e Anna Karina, impôs-se como uma referência tão mítica quanto etérea. Por um lado, exibia a assinatura de um lendário autor da nova vaga francesa; por outro lado, surgia como uma referência quase isolada desse movimento que tinha revolucionado o mapa do cinema europeu e, em boa verdade, mundial, despertando as energias criativas de novos cineastas dos mais variados contextos (incluindo Portugal)..Por essa altura, Pedro, o Louco (título original: Pierrot le Fou) ficou como símbolo quase solitário de um cinema de muitas e arrojadas transformações. De tal modo que a revelação de alguns outros títulos emblemáticos da nova vaga, em particular de Godard, só viria a acontecer durante a contida liberalização do mercado ensaiada pelo Governo de Marcelo Caetano, historicamente apelidada Primavera Marcelista. Assim, por exemplo, a primeira longa-metragem de Godard, o célebre À Bout de Souffle (1959), com Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg, homenageando a tradição do filme noir de Hollywood, chegaria às salas portuguesas em meados de 1970, com o título O Acossado..À Bout de Souffle é mesmo tradicionalmente apontado como um dos títulos da trilogia de 1959 - completada por Os 400 Golpes, de François Truffaut, e Hiroshima, Meu Amor, de Alain Resnais - que inaugura a nova vaga. Recentemente, o seu 60.º aniversário foi assinalado pelo lançamento de uma cópia restaurada 4K, com edição especial em Blu-ray..Foram tempos de genuínas revoluções formais e narrativas. A par dos companheiros da nova vaga - incluindo ainda autores como Eric Rohmer, Jacques Rivette ou Claude Chabrol -, Godard inspirava-se nos grandes mestres do classicismo europeu e americano para inventar surpreendentes formas de contar histórias, de alguma maneira desafiando o espectador para novas experiências, e diferentes prazeres, face a um ecrã de cinema..Daí a imagem de marca de Godard como experimentador nato, capaz de conceber cada filme como um objeto suscetível de superar e até, no limite, desmentir as proezas do anterior. Depois de À Bout de Souffle, seguiram-se projetos tão diversos como Uma Mulher É Uma Mulher (1961), celebrando a tradição da comédia musical, Viver a Sua Vida (1962), crónica social sobre a prostituição em Paris, e O Soldado das Sombras (1963), sobre a guerra da Argélia..Há mesmo uma anedota clássica que define essa pulsão experimental. Assim, conta-se que, um dia, Godard terá sido questionado sobre as suas narrativas nada convencionais: afinal, os seus filmes tinham, ou não, "princípio, meio e fim"? A resposta, embora afirmativa, incluía uma pequena ressalva: "Sim, mas não necessariamente por essa ordem...".Seja como for, a visão do mundo que perpassa em seis décadas de trabalho está longe de se esgotar num formalismo mais ou menos exuberante. A obstinada interrogação das formas - entenda-se: do modo de contar uma história - revela-se inseparável de uma ansiedade que, sendo estética, só pode ser compreendida através da sua sistemática atenção às grandes convulsões sociais e políticas..Afinal, Godard e os seus compagnons de route são também herdeiros de Roberto Rossellini (1906-1977) e das convulsões do neorrealismo italiano. Para os neorrealistas, o estudo crítico do legado trágico da Segunda Guerra Mundial - de que Roma, Cidade Aberta (1945), de Rossellini, é o símbolo aglutinador - decorre de uma exigência humana e humanista que, no caso de Godard, se transfigurará em apaixonada desmontagem das ilusões e desilusões das novas formas de organização pública e privada. A saber: o sistema de valores e de regras que cristalizou na chamada "sociedade de consumo"..Títulos como o já citado Viver a Sua Vida ou ainda A Mulher Casada (1964), sobre o novo enquadramento social da mulher, Masculino Feminino (1966), retratando os "filhos de Marx e da Coca-Cola", e Duas ou Três Coisas sobre Ela (1967), observando as consequências do crescimento urbano de Paris, refletem uma preocupação eminentemente didática, de uma só vez prática e filosófica. Que é como quem diz: que significa vivermos, aqui e agora? Por alguma razão, Weekend/Fim de Semana (1967), desesperado conto moral sobre a mercantilização das relações humanas, estreado entre nós no inverno de 1974, é definido na sequência de abertura através de duas frases programáticas: primeiro, "um filme perdido no cosmos"; depois, "um filme encontrado no ferro-velho"..A dimensão social dos filmes de Godard envolve mesmo, por vezes, a integração dos símbolos mais universais do continente cinematográfico. Ou seja: as estrelas. A noção segundo a qual o experimentalismo godardiano foi acontecendo apenas através de atores mais ou menos marginais, sem qualquer relação afetiva com o chamado grande público, é mesmo produto de uma disparatada cegueira histórica..Será preciso recordar o caso exemplar de <em>O Desprezo (1963)? Ao fazer a crónica dos bastidores da rodagem de um filme na ilha de Capri, tendo como ponto de partida o romance homónimo de Alberto Moravia, Godard integrava no elenco um outro dos seus mestres, o alemão Fritz Lang ("no papel de Fritz Lang"), a par de Michel Piccoli e Brigitte Bardot - e não será exagero sublinhar que Bardot, mais do que um símbolo do cinema francês, era uma das grandes estrelas internacionais..E que dizer do paradoxo de Tudo Vai Bem? Estava-se em 1972 e Godard saía da chamada "fase militante": os seus filmes sobre as clivagens do pós-Maio de 68 ilustravam a utopia de fazer "politicamente filmes políticos", ao mesmo tempo que enfrentavam imensas dificuldades de difusão. Como superar esse isolamento? Refletindo sobre tais impasses, sem dúvida, mas também voltando a fazer um filme no coração da grande indústria: Tudo Vai Bem tem chancela da Gaumont francesa, contando com duas estrelas que há muito tinham transcendido as fronteiras dos respetivos países. Quer dizer: a americana Jane Fonda e o francês Yves Montand..Estamos, afinal, a falar do cineasta que vive os efeitos de Maio de 68 estipulando a necessidade de não encerrar o labor cinematográfico nos limites das fronteiras nacionais. Na prática, isso levou-o a Inglaterra para rodar One Plus One ("um mais um" porque era preciso "recomeçar do zero"). Não exatamente para fazer uma "reportagem", antes para acompanhar os Rolling Stones durante as sessões de gravação do álbum Beggars Banquet... Aliás, contra a opinião de Godard, o filme passou a ser distribuído como Sympathy for the Devil, título da faixa de abertura do álbum..No constante processo de inventariação e discussão de novas linguagens, Godard tem sido também um criador atento às transformações das bases técnicas do cinema. Ou melhor, do audiovisual. A par de cineastas como o sueco Ingmar Bergman (1918-2007) e o italiano Michelangelo Antonioni (1912-2007), foi mesmo pioneiro na utilização das novas câmaras de vídeo. Exemplo fulcral é, em 1975, o filme Número Dois, retrato de uma família contemporânea, entre realismo e fábula, dando conta, em particular, de uma realidade cujo peso social e político, 45 anos depois, conhecemos bem: a crescente exposição do cidadão comum às mensagens televisivas..O cruzamento da memória do cinema com os novos recursos videográficos de tratamento e manipulação das imagens (e sons) teria a sua concretização nas história(s) do cinema, objeto monumental de quatro horas e meia de duração (apresentado nas televisões, regra geral, em quatro episódios). O plural entre parêntesis sublinha o poder do cinema face ao tempo da sua gestação: fazer a história do cinema é também colecionar as histórias que nele desembocam, ou dele emanam, a começar pelas memórias do Holocausto e de todos os traumas coletivos que pontuam o século XX (o "século do cinema", precisamente)..Dizer que Godard se coloca numa posição de vanguarda será, talvez, demasiado fácil. Vejam-se as suas experiências com o 3D, primeiro no filme coletivo 3x3D (2012), depois na longa-metragem Adeus à Linguagem (2014). O que mais conta não é, de modo algum, a ostentação tecnológica, mas sim a demanda existencial, essa loucura branda que assombra Pierrot/Belmondo. Veja-se também esse filme mágico, rodado em 1996, em que algumas personagens, num cenário de muitas memórias trágicas (Sarajevo), procuram linguagens e modos de encenação para dar conta dos impasses do destino individual e coletivo. O título possui qualquer coisa de libertador: Para sempre Mozart.