Rafael Sanzio (1483-1520) morreu no mesmo dia em que nasceu, 6 de abril, possivelmente com sífilis, após vários dias de febre. Tinha apenas 37 anos e estava no auge da sua carreira. Se estes não fossem dias de pandemia e de quarentena, Itália estaria agora celebrar os 500 anos da morte de Rafael, considerado, a par de Leonardo da Vinci e de Miguel Ângelo, um dos grandes mestres do Renascimento..Com mais de 200 obras expostas, incluindo 27 pinturas de Rafael, e um seguro total de mais de três mil milhões de euros (o maior seguro alguma vez feito para uma exposição em Itália, dizem os organizadores), a mostra na Scuderie del Quirinale, em Roma, era a maior exposição alguma vez dedicada ao artista, mas acabou por ser uma das grandes vítimas do coronavírus. Inaugurada a 3 de março, deveria ficar aberta até 2 de junho, mas fechou quatro dias depois, quando o governo italiano decretou o encerramento de todos os espaços públicos..Na exposição, feita em parceria com a Galeria Uffizi, de Florença, foram reunidas pela primeira vez mais de 120 obras de arte assinadas por Rafael ou, de alguma forma, atribuídas ao artista, entre pinturas, esboços, desenhos, tapeçarias e projetos arquitetónicos, que vieram de museus de Itália, Reino Unido, Alemanha, Espanha, Estrasburgo, França, Áustria e Washington (EUA). Estão lá a Madonna del Granduca, o famoso retrato de Rafael de Castiglione, os esboços para os frescos de Rafael na Villa Farnesina, encomendados pelo banqueiro Agostino Chigi, os esboços para a capela Chigi em Santa Maria del Popolo ou o grande retábulo de Santa Cecília. "Esta é uma oportunidade única de ver tanta beleza junta", comentou na apresentação Eike Schmidt, diretor da Galeria Uffizi..No entanto, por agora, a única visita possível é através de um vídeo de quase 13 minutos que está disponível no YouTube do museu. Depois de fechada a exposição, os funcionários cobriram todos os trabalhos para reduzir a sua exposição à luz. Mario De Simoni, presidente da Scuderie del Quirinale, comentou: "É como se a exposição estivesse a dormir, na esperança de que possa ser despertada em breve." Mas será que isso vai mesmo acontecer?.Num texto publicado há dias, refletindo sobre a importância de lembrar Rafael, apesar da crise que atravessamos, Michael Pearce, historiador de arte, dizia: "Em momentos de desespero temos fome de beleza, porque é nessas alturas que mais precisamos dela. A beleza é um santuário. É fundamental, não porque possa oferecer fuga da realidade, mas porque descobrimos que a beleza das virtudes humanas é o que mais desejamos quando as superficialidades da vida nos são arrancadas. Quando vivemos na incerteza e no medo, desejamos estabilidade e ordem. Ansiamos pelas coisas boas da civilização que, de outra forma, poderíamos considerar como certas.".De Urbino a Florença, com os mestres.Rafael nasceu em Urbino, Itália, em 1483. O seu apelido original é Santi mas ele usou Sanzio, uma das variações possíveis derivadas do latim Sancti, para assinar suas obras - embora muitas vezes só tenha assinado com Rafaello. O pai era também pintor e poeta e antes de morrer, quando o filho tinha 11 anos, passou-lhe o gosto pela arte, pela filosofia e pela cultura clássica. O jovem viveu depois em Perúgia (onde terá aprendido com Perugino a técnica da pintura mural, ou afresco. A primeira obra de relevo assinada por Rafael foi O Casamento da Virgem, pintura feita em 1504 para as igrejas de Città di Castello, em Umbria..Mudou-se depois para Siena e a seguir para Florença, centro artístico do momento, onde tomou contacto com as obras de Miguel Ângelo e de Da Vinci, que muito o influenciaram. Bebeu dos mestres toda a estética renascentista, além de técnicas como o sfumato e o chiaroscuro, a perspetiva, a composição das cenas e a perfeição anatómica das figuras..No período florentino, Rafael fez vários retratos e imagens da Virgem Maria. Veja-se, por exemplo, a famosa Madonna della Seggiola: as roupas da Virgem são bastante modestas e ela expressa um gesto instintivo de proteção afetuosa em relação à criança. É uma mãe enternecida.."Rafael é diferente de Leonardo da Vinci e de Miguel Ângelo, principalmente devido ao seu carácter muito sociável e amável. É visível nos seus retratos que ele tinha um verdadeiro carinho pelas pessoas que retratava; baseava-se numa análise muito precisa e profunda da personalidade e, por esse motivo, os retratos parecem pessoas vivas - ou seja, nossos contemporâneos, mesmo que tenham vivido há cinco séculos", considera Eike Schmidt..Por isso mesmo, Rafael está associado não só à "perfeição formal" mas também a uma ideia de beleza que é expressão de emoção e até de ternura. Cada pincelada é um ato de amor, criando algo quase etéreo, com uma suavidade que não encontramos em muitos dos seus contemporâneos..Quando Roma era o centro do mundo.Em 1508, o pintor instalou-se, por fim, em Roma, aonde chegou para trabalhar com o Papa Júlio II. Rafael tinha 25 anos mas o seu talento já era reconhecido. O artista foi contratado para decorar os aposentos de Júlio II no Vaticano (que hoje em dia são conhecidos como os "Quartos de Rafael"), criando murais inspirados na história e na cultura de Roma, desde os tempos clássicos passando pela história do catolicismo. Nas paredes da Stanza della Segnatura, Rafael pintou dois dos seus afrescos mais conhecidos: A Disputa e A Escola de Atenas, que representam Aristóteles e Platão rodeados de outros filósofos - mas nos filósofos representava também os artistas contemporâneos, incluindo ele próprio, como se quisesse sublinhar a dignidade intelectual do artista moderno e como uma homenagem a cada um deles. Estas são obras que exigem tempo - na sua criação mas também na sua contemplação, para que possamos desfrutar de todos os detalhes e encontrar todos os significados escondidos..Por esta altura, as personalidades mais importantes da cidade, cardeais, banqueiros e outros nobres, todos queriam ser retratados por ele. No ateliê de Rafael trabalhava um grupo de 50 discípulos que lhe permitiam dar resposta a todas as encomendas..O Papa Leão X mantém a relação com o artista e, em 1514, após a morte de Donato Bramante, faz de Rafael o arquiteto do Vaticano. Ele foi o responsável pelo projeto que alterou o plano da basílica do formato de uma cruz grega para uma cruz latina..A última comissão papal importante foi uma série de dez tapeçarias para a Capela Sistina, das quais sete resistiram e representam cenas da vida de São Paulo e de São Pedro, feitas para a Capela Sistina. As tapeçarias foram produzidas na oficina de Pieter van Aelst, em Bruxelas. Rafael não viveu o suficiente para ver as tapeçarias in situ, mas, durante uma semana no mês passado, o Vaticano exibiu todas as tapeçarias na Capela Sistina, como parte da homenagem nos 500 anos da morte do artista..Rafael foi também um dos primeiros artistas a preocupar-se com o estado de conservação dos monumentos mais antigos de Roma e a preparar uma lista precisa de todos, com propostas de proteção - essas propostas foram apresentadas naquela que ficou conhecida como a "Carta de Rafael de Urbino a Leão X". E é claro que ele também retratou os dois papas, Júlio II e Leão X (com os cardeais Giulio de Médici e Luigi de" Rossi)..A morte súbita de Rafael foi uma machadada no espírito de Roma. "Todas as esperanças nele, e a ideia de uma idade de ouro que continuaria, foram subitamente interrompidas", explica Ferino Pagden, historiador da arte. Leonardo da Vinci viveu até aos 67 anos, Miguel Ângelo até aos 88. Nunca saberemos como o estilo de Rafael se teria desenvolvido se ele tivesse vivido mais..Tal como era a sua vontade, Rafael foi sepultado no Panteão de Roma a 7 de abril de 1520, no dia seguinte à sua morte. O seu funeral foi seguido por uma multidão. O humanista Pietro Bembo escreveu o epitáfio gravado em seu túmulo: "Aqui jaz o famoso Rafael, por quem a natureza temeu ser conquistada em sua vida e que, perante a sua morte, temeu vir a morrer."