A notícia não é muito longínqua: no dia 4 de março de 2018, Sergei Skripal e a filha, Yulia, foram encontrados inconscientes num banco em frente a um centro comercial em Salisbury. Quando a polícia acorreu ao local, a primeira impressão foi de que se tratava de uma overdose, embora uma pesquisa rápida no Google horas mais tarde revelasse que Skripal era um ex-agente secreto russo acusado de alta traição à pátria, anos atrás, e que fez parte de um acordo de troca de espiões entre a Rússia e o Reino Unido. Deitada por terra a conclusão apressada do cenário de dependência de drogas, especializaram-se os procedimentos e concluiu-se que Sergei e Yulia tinham sido envenenados com a substância neurotóxica Novichok, uma arma química desenvolvida pela Rússia, no contexto da Guerra Fria, cuja presença naquela cidade inglesa teve consequências mais amplas do que estas duas primeiras vítimas..Sem enveredar pela componente política do caso, Os Envenenamentos de Salisbury, minissérie agora disponível no Disney+, retrata esse acontecimento e as medidas inéditas que ele provocou. Ao basearem-se em entrevistas e testemunhos em primeira mão, o interesse dos argumentistas Adam Patterson e Declan Lawn voltou-se para o lado humano e comunitário, deixando aos media a sua matéria de competência - cada um dos quatro episódios começa com imagens dos noticiários da altura apenas para consolidar o realismo do drama. Este, por sua vez, focado nas pessoas que trabalharam para garantir a segurança dos habitantes de Salisbury e nas vítimas acidentais do agente nervoso..Uma dessas vítimas foi o detetive sargento Nick Bailey (Rafe Spall), que entrou na casa de Skripal pouco tempo depois do sucedido para dar início às investigações. Assistimos à degradação progressiva do seu estado físico e neurológico, até ser internado no hospital, enquanto a diretora de saúde pública local, Tracy Daszkiewicz (excelente Anne-Marie Duff), entra em ação para se encarregar da conjuntura mais complexa com que alguma vez teve de lidar. Ela é muitíssimo competente, mas não se livra do facto de estar perante algo que ultrapassa a resposta garantida pelos conhecimentos científicos. As suas inquietações são mais do que válidas numa circunstância inédita..A minissérie andará muito à volta desta personagem real, Tracy, da sua roda-viva de reuniões e diligências, ou seja, o modo como a escala deste caso tomou conta do seu quotidiano, desde logo afetando a paz doméstica pela ausência constante e falta de tempo para o filho. Mas é sobretudo a pressão causada pela incerteza que domina os episódios. Que medidas adotar? Como controlar algo invisível? Como gerir o descontentamento da população, que não entende os rígidos procedimentos de segurança? Estas perguntas estão latentes o tempo todo, e não podem deixar de mexer com o espectador pós-covid. Afinal, Os Envenenamentos de Salisbury, produção anterior ao início da pandemia, acaba por dar uma imagem acurada do trabalho das autoridades e do ambiente em que as decisões difíceis são tomadas num cenário incerto - as estratégias de rastreamento e contenção são, no fundo, as mesmas..YouTubeyoutubeekoW6g_wg7A.Desde o primeiro episódio, conhecemos também Dawn Sturgess (MyAnna Buring), uma cidadã de Salisbury que, juntamente com o namorado Charlie Rowley (Johnny Harris), foi a vítima tardia do Novichok, meses após os três casos isolados. E ao contar-se, em paralelo, a história desta mulher, quando parece que é apenas uma personagem secundária, os argumentistas estão na verdade a humanizar alguém que dará ao final da minissérie uma carga intensa. Os Envenenamentos de Salisbury é isso mesmo: um drama policial que retrata uma operação de emergência de saúde pública pela sua vertente humana, frágil e íntima, com atenção genuína aos quadros familiares, e sem forçar a nota psicológica. Não há histerias ou emoções empoladas, mas palavras suaves que amenizam o cansaço acumulado. Aqui o centro de gravidade está nas pessoas, nas suas lutas individuais ou em nome do coletivo, e por isso é tão comovente perceber que tudo se vai traduzir numa homenagem a quem sentiu na pele os efeitos deste veneno, quem viveu o pânico das decisões e quem vai guardar sequelas. É deste olhar sereno, com personagens de carne e osso, que se fazem as melhores narrativas do pequeno ecrã..Originalmente transmitido pela BBC, Os Envenenamentos de Salisbury chega ao Disney+ numa altura em que este serviço de streaming está a apostar nas séries policiais. Entre as novidades encontram-se ainda Baptiste, sobre um detetive que se muda com a mulher para Amesterdão, descobrindo segredos obscuros nas ruas e canais da cidade; The Killing, que cruza três histórias à volta de um homicídio, com o passado a pesar sobre as personagens; e, das mais recentes, The Gloaming, centrada em dois detetives, igualmente marcados por fantasmas e tragédias pessoais, que investigam o assassinato brutal de uma mulher. Nesta moda do drama policial, Salisbury é a cidade onde os fantasmas do Novichok se encontram com os nossos fantasmas da pandemia..dnot@dn.pt