É a primeira mulher candidata à presidência da Associação Nacional das Farmácias. Como é que se sente no papel de pioneira? Enquanto pioneira sinto-me honrada, mas sinto que já é o corolário de muitas mulheres que me antecederam e que abriram caminho. Já tivemos mulheres dirigentes da ANF, enquanto vice-presidentes, e temos tido a nível profissional várias mulheres que ao longo das últimas décadas têm vindo a afirmar-se e aberto caminho para que pessoas como eu se possam sentir inspiradas para se apresentarem para cargos de liderança..O que é que a levou a candidatar-se e qual é o rumo que quer dar à ANF? Acha que a experiência que tem como dirigente a vai ajudar? Aquilo que nos leva a candidatarmo-nos é um momento sensível da Associação Nacional das Farmácias no que toca ao seu equilíbrio económico-financeiro, algo que nos preocupa, porque sem esse equilíbrio económico-financeiro interno é impossível prestar serviços de qualidade às farmácias para que elas também possam prestar um serviço de qualidade à população. Queremos apresentar uma visão alternativa de liderança e de gestão do universo associativo e do universo empresarial, que é vasto, da ANF. Mas queremos, acima de tudo, recentrar-nos nas necessidades das farmácias. Sentimos que há algum distanciamento nos últimos anos em relação às necessidades mais prementes e em relação ao que é necessário fazer para defender a sustentabilidade económica das farmácias. Em termos da minha experiência nacional e internacional, penso que efetivamente é uma mais-valia. Estive na direção da Associação Nacional das Farmácias durante oito anos, depois tenho estado na Ordem dos Farmacêuticos, onde também tenho aberto canais de comunicação, tanto com o Ministério da Saúde como com outros organismos relacionados, mas também com outros profissionais de saúde, com a indústria farmacêutica, os distribuidores grossistas... Por outro lado, a minha experiência internacional faz-me ter um conhecimento da realidade do setor das farmácias em vários países, o que julgamos ser útil..A ANF tem uma dívida que ronda os 400 milhões de euros. Como planeia resolvê-la se for eleita presidente? Diz que o Plano de Recuperação Financeira da atual direção é irrealista. Não é tanto o montante da dívida que nos preocupa, até porque parte dessa dívida decorre do facto de a ANF adiantar o valor das comparticipações às farmácias e, portanto, é sempre um valor que é fluido e que se iria manter. O que nos preocupa é a incapacidade que a ANF, e nomeadamente o seu universo empresarial, tem agora de gerar tesouraria para cumprir os seus compromissos a nível dos empréstimos bancários. É necessária uma reestruturação da dívida de forma a que associação possa cumprir, ou o universo empresarial possa cumprir, com esse serviço de dívida. E é isso que nos preocupa, porque a reestruturação que foi apresentada e as condições dessa reestruturação parecem-nos desadequadas e colocam em causa os ativos da associação. A associação tem bastantes ativos, tem um património calculado à volta dos 460 milhões de euros, portanto não se trata de uma circunstância de falência da associação, mas é uma dificuldade de tesouraria. Esta reestruturação está assente sobre um plano económico-financeiro que nos parece baseado em pressupostos irrealistas, nomeadamente empresas que têm um prejuízo acumulado significativo e que agora prevê-se que em 2023 atinjam o chamado break-even e possam começar a gerar lucros. Esse plano económico-financeiro prevê também, por exemplo, a distribuição de dividendos por parte da CUF, uma das empresas participadas da ANF, e que também sabemos não vai ocorrer, por causa das dificuldades inerentes ao contexto pandémico, mas também aos investimentos recentes que a CUF também fez..Acha que faz sentido a ANF ter essa parte empresarial? Temos uma empresa na área tecnológica, temos uma participação numa empresa na área da distribuição farmacêutica, temos também uma empresa na área da inteligência de mercado, da geração de dados e conhecimento... Vemos a nossa participação neste universo empresarial como uma forma de dinamizar o mercado e de garantirmos que estamos na vanguarda da utilização dessas tecnologias. Tem um segundo propósito que é que estas empresas sejam rentáveis, porque assim poderão distribuir dividendos à ANF e com isso temos, para além das quotas que recebemos das farmácias, riqueza adicional que podemos dedicar a projetos associativos. Ora, o que neste momento ocorre é precisamente o contrário. Como as empresas dão prejuízo são as quotas das farmácias que vão cobrir os prejuízos das empresas e isso, do nosso ponto de vista, não pode acontecer. O universo empresarial da ANF faz todo o sentido, mas se se atingir estes dois propósitos de dinamizar o mercado e paralelamente gerar riqueza..Acha que a atual legislação para o setor é a mais adequada para o papel que as farmácias representam atualmente? Temos uma legislação que reconhece às farmácias o importante papel que têm em disponibilizar uma série de serviços. Mas é uma legislação que depois não integra esses serviços na oferta do Serviço Nacional de Saúde. Não há - para além da questão da acessibilidade ao medicamento, em que há um contrato social entre o SNS e as farmácias para a comparticipação dos medicamentos - um modelo de contratualização de serviços. E, portanto, não há lugar a uma remuneração por parte do SNS em relação aos serviços que as farmácias prestam. Temos uma exceção, que é a troca de seringas, em que as farmácias durante muitos anos participaram de forma gratuita e que agora é um serviço pago pelo SNS. Mas nós gostaríamos de alargar esse conceito a outro tipo de serviços. Noutros países já é reconhecido o papel das farmácias, nomeadamente no papel de triagem e de tratamento dos chamados males menores ou de situações menores de saúde e em que as farmácias são remuneradas por fazerem essa triagem e disponibilizarem medicamentos não sujeitos a receita médica e aconselhamentos não farmacológicos para determinadas situações. E esse papel das farmácias é pago pelo Serviço Nacional de Saúde, assim como são pagos serviços, por exemplo, para acompanhar as pessoas durante duas ou três semanas quando começam a tomar um novo medicamento para uma doença crónica para garantir que aquela pessoa começa a utilizar o medicamento da forma correta. E, portanto, pensamos que é isso que falta. Ou seja, a legislação permite e reconhece, mas depois não há um modelo de contratualização formal entre o Serviço Nacional de Saúde e as farmácias..As farmácias cada vez mais vendem outras coisas, como produtos de cosmética e puericultura. Os farmacêuticos estão a sê-lo menos e a passarem a ser mais lojistas? As farmácias têm uma legislação bastante rígida no que toca à diversidade de produtos e nós queremos mantê-la assim. Efetivamente, temos nas farmácias produtos de dermocosmética e puericultura, mas tudo isso faz parte de um conjunto de produtos que respondem à premissa da qualidade de vida da população. Temos tido ao longo da última década uma diminuição em termos da rentabilidade das farmácias associada à dispensa dos medicamentos, por via da diminuição do seu preço e por via da revisão das margens, e termos estas outras áreas permite-nos aumentar a nossa rentabilidade e permite às farmácias continuar a manter o seu nível de serviço. Claro que, no nosso entender, o que seria o ideal era que houvesse um modelo de remuneração para o acesso ao medicamento e para os serviços que mencionei que permitisse às farmácias focarem-se mais nestes aspetos relacionados com a saúde e terem de recorrer menos a outras áreas de atividade para manter a sustentabilidade económica..Em Portugal existem cerca de 3 mil farmácias. São farmácias a mais ou a menos? Julgamos que a capilaridade e a distribuição das farmácias em Portugal está muito adequada às necessidades da população. Quando comparamos a média de habitantes por farmácia com outros países, por exemplo da OCDE, estamos muito próximos dessa média. O que nos preocupa é que temos farmácias em zonas do país onde até os correios já fecharam. Essas começam a ter problemas de sustentabilidade económica devido ao modelo de remuneração que temos. E sem apoio a essas farmácias, e sem lhes permitir desenvolver outro tipo de serviços dentro de um quadro de contratualização como aquele que referi anteriormente, será muito difícil garantir a sustentabilidade económica. Eu diria que, neste momento, ainda não temos um problema ao nível da distribuição das farmácias, mas se não criarmos condições para apoiar as farmácias mais pequenas de forma que permaneçam nessas zonas mais envelhecidas, podemos depois ter efetivamente dificuldades em continuar a prestar serviços a essas populações..Em que medida é que soluções adotadas durante a pandemia podem ajudar à vitalidade económica das farmácias? Recordo-me de farmácias que passaram a ter números de WhatsApp para se encomendar medicamentos ou usar os serviços de estafeta da Glovo e da Uber... Neste contexto pandémico houve uma série de serviços que foram ativados para continuarmos a garantir a prosseguimento das terapêuticas e pensamos que muitos desses serviços vão manter-se porque respondem a necessidades da população. Relativamente às questões de acessibilidade ao medicamento, nomeadamente ao domicílio, houve agora durante o contexto pandémico a necessidade de as farmácias se adaptarem a uma nova circunstância, mas achamos que agora num contexto de preparação do futuro devemos garantir que essas entregas dos medicamentos e as dispensas dos medicamentos estejam assentes sobre duas premissas. Uma delas é que seja garantida a qualidade da cadeia de distribuição e, portanto, nós acreditamos que tem de haver um sistema que seja regulamentado. Tem ainda de haver uma garantia de supervisão técnica da própria qualidade do medicamento. Ou seja, a dispensa pode decorrer em casa mas temos de garantir que há sempre o farmacêutico para prestar o aconselhamento necessário. Nós queremos apresentar uma proposta concreta ao Ministério da Saúde porque neste momento, mesmo essas entregas que referiu por estafetas, não estão regulamentadas e não estão cobertas pela legislação - pensamos que, devido ao contexto pandémico, houve alguma flexibilidade - mas aquilo que nós queremos garantir é que tudo seja feito com segurança para o cidadão, tanto a nível da qualidade do medicamento como ao nível do aconselhamento profissional..Em relação à pandemia, acha que o papel das farmácias saiu reforçado ou pensa que as farmácias foram menosprezadas por não terem sido incluídas logo desde o início no processo de vacinação? Claramente saímos valorizados em relação à população e penso que mais uma vez correspondemos às expectativas e às necessidades da população. Nunca fechámos as portas, estivemos sempre disponíveis para a população e para ir, por um lado, adequando os nossos serviços às diferentes fases da pandemia e, por outro lado, para encontrar novas formas de fazer chegar os medicamentos às pessoas. No entanto, continuamos a achar que deveríamos ter estado mais vezes à mesa das conversações porque teríamos tido outras oportunidades também de contribuir. E vou dar um exemplo específico em termos da renovação da terapêutica das pessoas que estavam com dificuldades em ir aos centros de saúde - muitos deles acabaram por adiar as consultas, as pessoas não estavam a ter acesso a prescrições médicas e nós disponibilizámo-nos para, em conjunto com os médicos, encontrar uma forma de o farmacêutico renovar essa terapêutica a partir da farmácia sabendo o histórico que aquela pessoa tem na utilização dos medicamentos. O Ministério da Saúde optou por desencadear uma situação de renovação automática com base num histórico que nós não sabemos muito bem onde é que é identificado. Foram lançadas uma série de mensagens para as pessoas com receitas, muitas delas com medicamentos que a pessoa já não estava a utilizar, e aquilo gerou uma enorme confusão nas pessoas. Teria sido muito melhor ter havido uma conversação com os médicos e farmacêuticos e encontrada uma solução profissional. Sobre a vacinação, os farmacêuticos estão capacitados para vacinar, mantemos a nossa disponibilidade para fazer parte do esforço de vacinação e estamos convictos de que mais cedo ou mais tarde vamos efetivamente fazer parte dessa solução..Que contributo podem os farmacêuticos e as farmácias dar para a saúde dos portugueses? Nós somos o profissional de saúde que está mais próximo dos portugueses e que está mais acessível, numa perspetiva de que as pessoas não têm de marcar consulta, temos as portas sempre abertas. Temos de criar circunstâncias para haver canais de comunicação com os outros profissionais de saúde e uma das nossas reivindicações de longa data é no acesso das farmácias ao sistema de dados em saúde da população. Acreditamos que é o cidadão que tem de dar acesso ao seu ficheiro, se assim o entender, se achar que aquele farmacêutico é o farmacêutico que faz parte da sua equipa de saúde. E se nós tivermos esse acesso e se tivermos esses canais de comunicação faremos efetivamente parte da equipa multidisciplinar de saúde e, nessa perspetiva, temos muito valor a acrescentar à saúde dos portugueses..ana.meireles@vdigital.pt