O turco que decidiu que o lugar do seu país era na Europa

António Ferro foi em reportagem à Turquia e voltou maravilhado. "A mulher turca, depois de Mustafa Kemal, é a mais avançada de todo o mundo: igual ao homem perante a lei", escreveu o jornalista num livro publicado pelo Diário de Notícias em 1927. Ferro dá créditos por tal a Latife, a mulher do líder, turca educada em Paris e Londres ainda na era otomana, mas ironiza com o divórcio, dizendo que em casa o homem que ficaria para a história como Atatürk (Pai dos Turcos) tinha alguma dificuldade em lidar com tanto feminismo.."A República da Turquia é uma criação indissociável de Mustafa Kemal, mais tarde Atatürk, um macedónio do Império Otomano nascido em 1880 ou 1881 em Salónica. Tal como os Jovens Turcos, Atatürk foi buscar inspiração política às ideias nacionalistas do século XIX e inícios do século XX, à racionalidade técnico-científica e ao espírito positivista europeu de época", afirma José Pedro Teixeira Fernandes, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI), da Universidade Nova..Segundo o autor do livro Turquia: Metamorfoses de Identidade, "com as suas tradições políticas, religiosas e tecnológicas arcaicas, o Império Otomano era visto como o responsável maior pela decadência turca. Após vitória militar no período crítico de 1919-1922 contra a Grécia e os seus aliados - e com as transformações efectuadas no antigo Estado Otomano -, Atatürk adquiriu grande prestígio. A abolição do califado, ficando o Islão sob controlo estadual, a introdução de uma constituição republicana e de um código civil, o direito de voto das mulheres e o uso do alfabeto latino estão entre as transformações mais radicais". José Pedro Teixeira Fernandes destaca o papel dos alevi, "um grupo islâmico heterodoxo discriminado na era otomana, cruciais no apoio interno a essas transformações que lhes permitiram ascensão social num país tradicionalista sunita"..Há também que ter em conta que desde pelo menos o século XIX existia uma elite turca, incluindo muitos sunitas, atraída pela cultura e pela ciência europeias. Um irmão do famoso Donizetti chegou a ensinar música em Istambul, a antiga Constantinopla..O investigador do IPRI sublinha, porém, que "apesar da influência europeia, Atatürk foi mais um modernizador e nacionalista do que um europeizador stricto senso. O seu modelo político foi um despotismo iluminado com tonalidades turcas"..Para se perceber o sucesso da liderança de Atatürk é preciso relembrar que durante a Primeira Guerra Mundial já se tinha distinguido como um comandante brilhante, nomeadamente na batalha de Galipoli. Ganhou aí uma aura de herói que foi decisiva quando liderou a resistência turca ao Tratado de Sèvres, que retalhava a Anatólia, como conta o historiador britânico Andrew Mango, o mais reputado biógrafo.."A Turquia foi o primeiro país muçulmano a tornar-se um Estado-nação e uma democracia com a proclamação da República Turca por Mustafa Kemal Atatürk, em 1923, na sequência da bem-sucedida Guerra Nacional da Independência. No seguimento do estabelecimento da República, Atatürk introduziu uma série de reformas com o objetivo de modernizar a sociedade turca e de elevar o país até aos mais altos níveis de civilização e prosperidade. O seu objetivo passava por estabelecer um lugar notável para a Turquia entre as nações ocidentais mais desenvolvidas", nota Lale Ülker, embaixadora da Turquia em Portugal..A diplomata explica que "o Ocidente, para Atatürk, simbolizava o progresso constante na ciência e na tecnologia de forma a procurar o desenvolvimento e a superação. Através do conceito de ocidentalização e modernidade, Atatürk deixou uma 'visão' para a sociedade turca aspirar e alcançar. A Turquia prosseguiu esta 'visão' ao assumir totalmente o compromisso de se tornar um membro da União Europeia (UE), sublinhando que a sua adesão iria beneficiar tanto a Turquia como a UE. A Turquia contribui ativamente para os esforços que dão resposta a múltiplos desafios que afetam a Europa. A Turquia faz parte da Europa e é membro de quase todas as instituições europeias, incluindo o Conselho da Europa e a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa, sendo membro fundador de ambas"..O legado ocidentalizador continua vivo quando se está a três anos apenas do centenário da república. E a ambição de integrar a UE faz parte desse espírito ataturkista. "O estatuto de membro da UE foi sempre a prioridade estratégica de todos os governos turcos, assim como uma vontade forte por parte do povo turco. Logo que a Turquia se torne membro da UE, irá contribuir significativamente para o bloco num amplo conjunto de áreas, incluindo segurança, migração, dinâmica económica, soft power e segurança energética. Apesar de altos e baixos no processo de negociação, o nosso diálogo construtivo com a UE continua, já que a "visão" progressista da Turquia e a sua vocação pela UE permanecem intactas", destaca Lale Ülker..Como escreveu António Ferro, o casamento de Mustafa Kemal não correu bem. Mas uma das filhas adotivas, Sabiha Gökçen, acabou por personificar a modernidade turca e a emancipação da mulher turca: foi aviadora e piloto militar..Ataturk morreu em 1938, no Palácio de Dolmabahçe, que os sultões tinham mandado construir junto ao Bósforo em estilo europeu para substituir o Topkapi.

O turco que decidiu que o lugar do seu país era na Europa

Artigos Relacionados