Quando Naomi Osaka, a número 2 do ténis mundial, um dos cinco maiores ícones atuais da modalidade e atleta mais bem paga do mundo desiste de Roland Garros, um dos maiores torneios do mundo, em nome da saúde mental "é um sinal de alerta", que não pode nem deve ser ignorado, segundo o psicólogo do desporto Jorge Silvério.."Os atletas têm um papel na sociedade para além do seu valor como desportistas e por isso é extremamente importante que chamem à atenção para esta causa. Quando vemos uma atleta da valia da Naomi Osaka assumir que está com dificuldades ao nível mental é um alerta e facilita que muitos outros atletas, e pessoas no geral, ultrapassem algumas resistências que ainda existem e recorram a ajuda profissional", defendeu o psicólogo, habituado a lidar com problemas de depressão e controlo de ansiedade entre atletas de elite.."Lamentavelmente, Portugal não tem um estudo sobre o impacto da saúde mental no desporto nem mecanismos de proteção", revela, apesar de reconhecer que o Comité Olímpico de Portugal e o Sindicato de Jogadores de futebol têm programas de apoio psicológico: "O canal habitual é a confissão a um amigo, que depois aconselha e até os encaminha para ajuda profissional.".Recorrer ao psicólogo é cada vez mais usual, mas ainda "existe muito o estigma do secretismo". "A ideia que se tem em relação aos atletas é que eles superam tudo, têm de ser fortes a todos os níveis e há o receio de prejudicarem essa imagem pública revelando que estão a receber ajuda psicológica ou de outro tipo. Esse receio é a maior nos desportos coletivos, devido ao chamado balneário, muito potenciador do problema. Há sempre alguém que manda uma boca ou provoca", explicou o Jorge Silvério, que também trabalha com a seleção nacional de futsal..Sabendo que o sucesso desportivo assenta em quatro componentes - física, técnica, tática e psicológica - o primeiro objetivo do psicólogo na área do desporto "é dar ao atleta ferramentas para potenciar o rendimento desportivo"..Jorge Silvério defende ainda uma abordagem preventiva. "Há sinais de alerta, como alterações no comportamento, perturbações no sono, perturbações alimentares e alteração de estado de humor sem causa aparente, a que devemos estar atentos para impedir que entrem em desordem de ansiedade ou até depressão", defendeu..A tenista japonesa, dona de quatro Grand Slam aos 23 anos, recusou falar aos jornalistas - uma das obrigações de participação do torneio francês -, foi multada em 12 mil euros e ameaçada de expulsão pela organização, tomando ela a iniciativa de abandonar o torneio de terra batida. Ressalvando que a imprensa especializada "tem sido sempre simpática", as perguntas da "imprensa mundial" deixam-na nervosa e stressada com as respostas que sente que tem de dar..Naomi Osaka tinha avisado que não iria marcar presença nas conferências de imprensa, mas em vez de compreensão ouviu os organizadores do torneio dizerem que "não era aceitável" e viu os críticos a colocarem-lhe rótulos de "diva". A tenista foi ainda criticada por anunciar a decisão nas redes sociais, em vez de negociar uma exceção com Roland Garros. "Nunca quis ser uma distração e aceito que o meu timing não foi o ideal e que a minha mensagem podia ter sido mais clara", disse, acrescentando que "nunca trivializaria a saúde mental ou utilizaria o termo de forma banal". E assim a número 2 do ranking WTA abandonou o torneio, sem hesitações. A Federação Francesa de Ténis lamentou o sucedido, mas colocou o respeito pela imprensa ao mesmo nível do bem-estar dos atletas.."Há alguns atletas que ficam muito nervosos quando expostos em público, como é o caso de uma conferência de imprensa. A ansiedade por esse momento, o não saber que perguntas lhe vão fazer, pode afetar o desempenho no treino, por exemplo. Claro que o atleta pode dizer que não quer responder, mas isso nem sempre é bem visto, mesmo que o façam com educação, pois pode levar a outras perguntas. Devem procurar ajuda para encontrar mecanismos que os ajudem a lidar com essa ansiedade", diz Jorge Silvério, lembrando que os atletas não vivem isolados numa bolha e o que acontece à sua volta tem impacto neles..Filha de mãe japonesa e pai havaiano, Osaka vive nos EUA desde os três anos de idade e tem-se revelado uma ativista enérgica. Agora fez do silêncio a sua arma pela saúde mental. Sendo japonesa e negra, Naomi Osaka foi exposta e questionada sobe tudo, incluindo Pokémons (bonecos japoneses de um jogo virtual). As respostas fizeram dela uma das vozes mais ouvidas e respeitadas, sem deixar transparecer que não estava a saber lidar com isso. Sabe-se agora que, já desde 2018, sofre de depressão e recebe ajuda. Ou seja, desde que venceu a todo-poderosa Serena Williams e conquistou o primeiro Grand Slam, o US Open..Nessa altura, muitos lhe perspetivaram um futuro brilhante. E estavam certos. Em fevereiro, depois de vencer o Open da Austrália tornou-se a terceira jogadora mais bem-sucedida, apenas atrás de Serena Williams (23 majors) e Venus Williams (sete). De acordo com a revista Forbes, Osaka embolsou 30,6 milhões de euros, entre prémios e contratos de patrocínio, valor que a tornou a atleta mais bem paga da história, superando o recorde de Maria Sharapova, em 2015. E nem todas as marcas estarão contentes, agora, com o boicote a Roland Garros e a ameaça de paragem na carreira..A depressão em atletas de elite deixou de ser tabu quando Michael Phelps admitiu, em 2016, que pensou em colocar um fim à própria vida, após os Jogos Olímpicos de 2012. A confissão da lenda viva do desporto olímpico, dono de 23 medalhas de ouro, três de prata e duas de bronze abriu os olhos para a doença "mais incapacitante de todas", que afeta mais de 300 milhões de pessoas, segundo a Organização Mundial da Saúde..Apesar de vários estudos apontarem a prática de exercício físico como um antidepressivo natural, os atletas não estão imunes ao problema. No ano passado foi a vez da supercampeã Simon Biles, explicar numa entrevista à Vogue como lidou com a depressão, após os abusos de que foi alvo do então médico da seleção de ginástica dos EUA, Larry Nassar. Também a campeã olímpica de judo Rafaela Silva também admitiu ter procurado ajuda por não saber lidar com a pressão do sucesso após alguns falhanços..A estrela da NBA, Kyre Irving, passou por momentos "muito complicados" quando estava nos Celtics e confessou mesmo que perdeu "a alegria de jogar" após a morte do avô. Também Paul Pierce admitiu que ter tido momentos depressivos e um ataque de pânico durante um jogo..Per Mertesacker, Di Maria e Andrés Iniesta são alguns dos futebolistas que admitiram problemas. Também João Sousa assumiu recentemente que tem estado "desanimado animicamente"e por isso os resultados não têm surgido. E ainda há dias Raven Saunders do lançamento do peso contou à CNN como se prepara para Tóquio 2021, tentando passar a mensagem que é preciso "deixar de estigmatizar a saúde mental" e ajudar outras pessoas e atletas que, como ela, podem entrar em ciclos de depressão e ansiedade..isaura.alemida@dn.pt