O despontar da primavera de 1897 juntou cortejo singular ao troteio das manadas de búfalos no Parque Nacional de Yellowstone, nos Estados Unidos da América. Duas dezenas de homens pedalavam sobre terreno pouco favorável a ciclistas. À dura jornada acresciam dezenas de quilos de rações, roupas, utensílios de cozinha e tendas. O 25.º Regimento do Exército dos Estados Unidos, unidade afro-americana conhecida como Buffalo Soldiers, cumpria nova etapa na expedição de três mil quilómetros que ligava os estados do Montana e do Missouri. Para a equipa encabeçada pelo oficial James A. Moss, as Montanhas Rochosas e as colinas arenosas do Nebrasca não constituíram obstáculo..Vinte homens ao pedal para provarem a eficácia militar do veículo que trazia uma história que remontava ao início do século XIX. Nas suas bicicletas, equipadas com os pneus com câmara de ar patenteados pelo inglês John Boyd Dunlop em 1890, os Buffalo Soldiers cumpriam etapas diárias de 80 quilómetros. Corriam mais rápidos do que a cavalaria. Um corre-corre que também percorria a Europa..Em 1886, a Alemanha testou em campo um corpo militar de ciclistas, mais tarde equipa de batedores e tropa de choque. Em 1890, um tenente do exército russo pedalou mais de dois mil quilómetros, de São Petersburgo, no seu país natal, até Londres, capital inglesa, um feito cumprido sobre um veículo com perto de 50 quilos e em etapas diárias de 112 quilómetros. Isto, numa Europa precária de estradas. Em 1895, enquanto os Buffalo Soldiers singravam nas planícies americanas, Londres reunia no Stanley Cycle Show, certame dedicado à bicicleta, 200 fabricantes e milhares de veículos de duas rodas..O mundo perdia-se de amores pela simplicidade da bi (dois) kyklos (ciclos), com o seu par de rodas unidas a um quadro e movidas a pedais pelo esforço do utilizador. Não era pouco, a humanidade experimentava o veículo que a emancipava. A bicicleta trazia uma genealogia que reunia designações como celerífero, draisiana, dandy horse, velocípede, penny-farthing. A linhagem da bicicleta é extensa e com contributos tão diversos como o de construtores de relógios, ferreiros, industriais de carrinhos de bebés e do fabrico de pneus..As cidades e os campos pedalavam, nem sempre ordeiramente, como o perceberia Theodore Roosevelt. Em 1895, o futuro presidente dos Estados Unidos, então comissário da Polícia de Nova Iorque, criou o Esquadrão Scorcher. A unidade policial de ciclistas impunha ordem aos incumpridores entre os condutores de carruagens. Longe, no poeirento outback australiano, os tosquiadores de lã galgavam centenas de quilómetros de bicicleta para alargarem as oportunidades de trabalho..Em Inglaterra, o escritor e visionário H. G. Wells enamorou-se do veículo de duas rodas para o incluir na sua escrita. The Wheels of Chance, obra satírica do criador de A Guerra dos Mundos, aborda um feriado de bicicleta em agosto de 1895, peripécias transpostas mais tarde para o cinema mudo. Também em Inglaterra, um outro homem das letras, Jerome K. Jerome, não resistiu em satirizar o seu tempo no livro de 1900 Três Homens de Bicicleta (Three Men on Wheels). Ainda na década de 1890, Henry Dacre convidou a Europa e a América do Norte a cantarolarem o refrão "uma bicicleta para dois". Setenta e um anos volvidos, o tema Daisy Bell era entoado num computador IBM. A música inspirada no passeio a dois de bicicleta trinou em 1961 na primeira "voz" sintetizada..Sobre a bicicleta, afirmou Wells ter ampliado os horizontes da classe trabalhadora que, então, poderia ir para o trabalho, viajar, praticar exercício ao ar livre. Uma liberdade a que não ficaria alheia a mulher. Em 1890, as páginas da Godey's, revista sediada em Filadélfia, entregaram ao prelo as seguintes palavras: "Na posse da bicicleta, a filha do século XIX sente a sua declaração de independência anunciada.".Uma independência que Annie Londonderry, jornalista norte-americana, nascida na Letónia em 1870, levou mundo fora. De junho de 1894 a setembro de 1895, Annie encetou viagem épica. Chicago, nas margens do lago Michigan, assistiu à última etapa da primeira mulher a concluir a volta ao mundo em bicicleta. Egito, Sri Lanka (então Ceilão), Singapura, China e Japão assistiram às pedaladas estafadas de Londonderry. Com parcos recursos, trocando as saias por umas cómodas calças, fazendo escalas de porto em porto, a ciclista reiterou no feminino o feito de 1887 do britânico Thomas Stevens..DestaquedestaqueDe junho de 1894 a setembro de 1895, Annie encetou viagem épica. Chicago, nas margens do lago Michigan, assistiu à última etapa da primeira mulher a concluir a volta ao mundo em bicicleta..O Oriente visitado por Londonderry experimentava igual vertigem da velocidade sobre a bicicleta. Na década de 1860, o diplomata chinês Bin Chun fez périplo por França, Alemanha e Inglaterra e revelou o seu espanto pelo veículo de duas rodas. Nas três décadas seguintes, a bicicleta tornava-se a principal alternativa de transporte na China e na Índia..Não obstante a facilidade com que a humanidade saltou para o selim e pedalou, a epopeia da bicicleta não se fez sem quedas e hesitações. Em 1818, um orgulhoso Karl von Drais, barão alemão com estudos de Arquitetura, Agricultura e Física, sofreu o ridículo público. O parisiense Jardim do Luxemburgo assistiu ao passeio da draisiana, dresina ou dandy horse, a "trisavó" das modernas bicicletas. Von Drais fez-se velocipedista e esforçou as pernas sobre uma viga de madeira que unia duas rodas e um suporte para braços e mãos. À invenção de 1780 do conde de Sivrac, apelidada de celerífero, o alemão acrescentou um freio e o guidão, sistema que permitia curvar. Ainda mais distante no tempo, o ano de 1680 assinalou a pré-história da bicicleta. O alemão Stephen Farfler, construtor de relógios, engendrou e construiu para si uma cadeira de rodas manobrada com manivelas..Na capital francesa da primeira metade do século XIX, Von Drais não convenceu os parisienses com a sua Laufmaschine, a "máquina de andar". Os mesmos parisienses que em 1862, então já rendidos aos veículos de duas rodas e com uma indústria embrionária de bicicletas, viram o município inaugurar caminhos para velocípedes nos parques da cidade..Quanto ao barão Von Drais, não desistiu e patenteou a sua invenção na Alemanha. Em França, exibiu-se numa jornada de 20 quilómetros entre Beaune e Dijon, na volta europeia de promoção do invento. Premonitório, o alemão antecipou em 11 anos a primeira corrida de 26 drasinianas. A 20 de abril de 1829, os velocipedistas percorreram cinco quilómetros em circuito urbano na cidade alemã de Munique - uma corrida desconfortável..À drasiniana ainda lhe faltava futuro e, com ele, os pedais, com os contributos, em 1939 e 1955, respetivamente dos ferreiros escocês Kirkpatrick MacMillan e gaulês Pierre Michaux. O sistema foi melhorado em 1862 pelo francês Pierre Lallement, fabricante de carrinhos de bebé, embora sem poupar ao utilizador um problema de mecânica: pedais e roda dianteira eram inseparáveis. A velocidade dependeria sempre do esforço do ciclista..DestaquedestaquePara a posteridade, o inglês John Kemp Starley ficou ligado à invenção da moderna bicicleta. Na década de 1880, o pai de dez crianças trouxe a simetria às duas rodas do veículo, a tração traseira e "emagreceu-o" para os 20 quilos..Problema que a inventiva da Inglaterra Vitoriana da década de 1860 procurou contornar, ao oferecer aos velocipedistas a penny-farthing (o perfil recorda duas moedas de tamanho desigual, o penny e o farthing) ou a grande bi, assim apelidada pelos franceses. A assimetria de duas rodas desiguais, com a dianteira a ultrapassar o metro e meio de diâmetro, garantia um percurso maior a cada pedalada. Não vingou a bela penny-farthing, a primeira bicicleta construída somente com metal e capaz de acelerar até aos 40 quilómetros por hora. Causa de temor e de quedas aparatosas, conheceu a extinção em face do momento seguinte na evolução da bicicleta..Em 1877, os pedais viajaram da roda dianteira para o quadro da bicicleta para se unirem com engrenagem à roda traseira. Para a posteridade, o inglês John Kemp Starley ficou ligado à invenção da moderna bicicleta. Na década de 1880, o pai de dez crianças trouxe a simetria às duas rodas do veículo, a tração traseira e "emagreceu-o" para os 20 quilos. Ao fundar a Rover Cycle Company Ltd, Kemp lançou a semente para a Rover, marca e construtora de automóveis nascida em 1904..Indústria automóvel que beneficiou, tal como o mundo das bicicletas, de um contributo inglês para o conforto das viagens. Em 1890, centenas de milhares de glúteos agradeceram ao veterinário John Boyd Dunlop a aplicação de câmaras de ar às rodas das bicicletas. Antes, os ciclistas empreendiam viagens dolorosas sobre aros de madeira, com o perímetro coberto de borracha..A "alma" da roda, como ficou conhecida, insuflava com ar comprimido, o que também acrescentou velocidade à bicicleta. Em 1891, Édouard e André Michelin, os senhores que deram ao mundo mais do que pneus, ao fundarem o primeiro guia de referência para viajantes, ofereceram aos ciclistas o pneu desmontável. Dos desmontáveis para os entortáveis, o norte-americano Isaac R. Johnson patenteou em 1889 a primeira bicicleta dobrável..Também em terras do Tio Sam, Sylvester Howard Roper desenvolveu em 1867 um motor de cilindro a vapor e adaptou-o à bicicleta. O engenho pode ser tido como a primeira motocicleta da história. a criação foi aperfeiçoada mais tarde por Roper, que, em 1896, aos 73 anos, a apresenta publicamente. A prova de velocidade a 1 de junho ditou os limites do veículo, mas também os de Sylvester, que morreu durante o teste..Do aparato da exibição da draisiana de Von Drais às bicicletas envolvidas em competição não mediou um século. O ciclismo como desporto nasceu nos idos do século XIX com a intenção de oficializar as primeiras competições internacionais. A International Cycling Association, nascida em 1892, juntava, entre outros, Bélgica, Alemanha, França, Países Baixos, Canadá e Estados Unidos..DestaquedestaqueEm 1891, Édouard e André Michelin, os senhores que deram ao mundo mais do que pneus, ao fundarem o primeiro guia de referência para viajantes, ofereceram aos ciclistas o pneu desmontável..Em França, o primeiro Tour decorreu em 1903. No final, os quase 2500 quilómetros de prova foram concluídos por 21 dos 61 ciclistas que a iniciaram. Músculos que se esforçavam por superar a adversidade de conquistarem as seis etapas sem a ajuda de um sistema de mudanças de velocidade. Este nasceria em 1927, assim como todo um mundo de artefactos que se moldariam a uma outra indústria, a automóvel.