O Balada é desafiante, cospe "com cara de mauzão" e usa sacho para tirar o esterco dos cascos das patas (das vacas, entenda-se). "Ninguém não manda em mim", afirma sem tirar o chapéu. É um machão que pensa e diz o que quer, com frases para impressionar "femas" e canções repletas de ironia, construídas com muitas camadas. É rapper mas também "lavra, pesca, coze, passa", como bom micaelense. Quando não calça as botas de cano, responde ao nome de Francisco e revela uma desarmante normalidade. Como um Sansão sem cabeleireira ou um Clark Kent sem capa voadora, assume uma tendência para a introspecção - ou mesmo timidez..Se a criatura é famosa e já foi entrevistada pelo Açoriano Oriental, o criador desfruta do anonimato, apesar de ter sido auscultado pelo Correio dos Açores como consultor e gestor de alojamentos locais. Filho de uma professora e um dentista, Francisco B. C. nasceu em Ponta Delgada há 33 anos. Começou Direito em Lisboa e acabou Turismo em Coimbra. Trabalhou em Kokkola (Finlândia), Antibes (França) e Florianópolis (Brasil), antes de regressar a São Miguel, em 2011. Inicialmente, o Brassado chamava-se Balada Lagedo - um local algo problemático em Ponta Delgada..A primeira canção no YouTube, A Gente Vai Se Consolar, surgiu em 2017 "como uma brincadeira", sem imagens. "A música teve feedback positivo, o que me levou a pensar um bocado melhor no projeto", explica. Depois, retirou-a da internet e, em abril de 2018, voltou a postá-la com as imagens gravadas e editadas por Hugo França.."Vos, diz Chriſto Senhor noſſo, fallando com os Prègadores, ſois o ſal da terra" - escreveu o Padre António Vieira no célebre Sermam de Santo António (aos Peixes), num português quase tão inapreensível quanto o linguajar do Balada Brassado. Tal como o ilustre orador jesuíta, a estrela do YouTube gosta de soltar pregações, criticar os costumes e lutar contra os poderes estabelecidos em favor dos mais fracos, só que em vez de índios e escravos defende os indígenas de São Miguel e animais como o Leão, o "pobre cão" a quem dedica uma canção..Passa da hora de jantar e estamos no quartel-general do Brassado, uma tasquinha com móveis vintage que está prestes a transformar-se num dos espaços mais animados de Ponta Delgada. O meu interlocutor fala do mesmo jeito que o artista que já tem mais de 120.000 visualizações nas redes sociais - isto é, com forte sotaque local - mas o timbre é menos grave e a roupa está nos antípodas: em vez de botas de cano, tatuagem na tíbia, chapéu de vaqueiro e correntes douradas, veste como um jovem conservador de direita, só que na versão desportiva: ténis imaculados, camisa aos quadrados e casaco tipo Barbour..Por enquanto, não é muito conhecido fora do arquipélago, mas na internet é toda uma celebridade. Além de três videoclipes e largas centenas de subscripções no YouTube, conta com mais de 7.000 seguidores no Facebook, onde escreve regularmente fait-divers na sua linguagem idiossincrásica. Um excerto: "Meu primo Marquinho, cismado, amigo de ler, muito magritxinho que só come é sarralhas de coelho, sentou-se de pernas à chinês, comeu duas folhas de couve e ficou com cara de enfastiado. Sempre foi um bom subica para comer. E eu guerrei-me logo à minha sandes de atum. Eu como sempre é atum, que é para ficar com cara de bonito. Pas femas, não sabes?".Lembra-se dos sonhos que tinha em pequenino? Nunca tinha pensado nessa pergunta....Mas faz essa pergunta numa das suas canções, "A Gente Vai se Consolar"... Isso é virar o feitiço contra o feiticeiro. O meu sonho mesmo era ver os Açores como o sítio desenvolvido que eu acho que podia ser. Isto é muito pequeno e é fácil criar políticas que beneficiem toda a gente, desde que haja boa vontade e o dinheiro público não seja mal empregue. Imagino um sítio muito desenvolvido com agricultura exemplar, leite biológico, turismo de natureza, desenvolvimento sustentável de ponta... Gostava também que houvesse mais instrução, que não tem que ser formal, não tem que ser dada numa escola normal - até porque não acredito na escola normal. Acho que é um modelo gasto e obsoleto, que não faz sentido. E gostava que houvesse uma nova forma de ensinar que pudesse acompanhar os problemas das pessoas, porque algumas pessoas não querem aprender, e não há forma de as cativar. A educação é fundamental e um dos meus sonhos principais, porque a partir daí consegue-se fazer o resto. Então o meu sonho é ver os Açores líderes mundiais de educação, como a Finlândia ou a Noruega..O pensamento crítico, ou mesmo político, aparece nos seus escritos mas raramente nas canções. Porquê? Aparece nas canções de uma maneira muito mais sub-reptícia, mais underground e disfarçada. Um dos objetivos é que a música seja fácil de ouvir, que não seja logo política para não afastar ninguém. Se a mensagem passar de uma forma mais disfarçada, no meio de uma piada ou duas, entra muito melhor do que batendo de frente, dizendo tudo com os nomes certos..Portanto, não estão na calha canções sobre leite biológico ou modelos alternativos de educação. Com certeza que não, até porque a mensagem se calhar não chegava a muitas das pessoas que é suposto chegar. Muitas das músicas são para as pessoas que têm menos instrução, que estão menos habituadas a ouvir ou que não ligam muito a esse tipo de conteúdos. Tento passar as mensagens de uma forma muito menos direta, muito mais leve..As canções estão escritas na primeira pessoa: "Sou um puto que não sabe rimar", "Sou um macho tropical", e por aí fora. São, todas elas, autobiográficas? São, em grande parte, uma mistura de uma personagem fictícia com os meus verdadeiros anseios..Bom, imagino que a do "pobre cão chamado Leão" não seja autobiográfica. Exato (risos). Essa é sobre a história dos cães de cá, em que eu me pus na pele de um cão e faço uma chamada de atenção, um pedido de ajuda por parte dos cães da região dos Açores..Considera-se também um defensor dos direitos dos animais? Sim, mas mais numa perspetiva de respeito e não tanto do alarmismo tão em voga..Os milhares de visualizações no YouTube estão a ser monetizados, para usar um termo em voga? Para já ainda não. É possível que com mais vídeos e com mais conteúdos consiga monetizar o projeto, mas por enquanto não. Fiz umas t-shirts para venda, mas o dinheiro é para uma instituição de solidariedade social. Ainda não faço dinheiro com isto..O som, a montagem e a fotografia dos telediscos do Brassado não só têm uma qualidade profissional como têm vindo a melhorar de vídeo para vídeo. Qual é o segredo? O Hugo França é o realizador, eu faço o som e o Emanuel Cabral, que é o responsável pelo som do Coliseu Micaelense, trata da masterização. É engenheiro de som e ajuda-me a dar um bocadinho de compressão e a formar o som, a dar-lhe potência e brilho. De resto, faço o som sozinho em casa, num programa em que aprendi a mexer. A equipa é reduzida, mas o Hugo tem uma experiência enorme, há mais de 20 anos que faz vídeos e acho que isso se nota. A qualidade pode ter ido em crescendo porque nós no início começámos às cegas, de uma forma completamente descontraída. Agora acho que se nota um maior planeamento..(Enquanto falamos, o ortónimo do Balado Brassado é interrompido frequentemente por pessoas que vão chegando ao bar. A meio da entrevista, o dono do espaço prepara dois cocktails que irá servir em canecas de metal decoradas com o nome do artista e um dos seus anagramas oficiais: colar, óculos de sol e chapéu de coco, três elementos que evocam Heisenberg, o barão da droga da série Breaking Bad)..Por falar no Coliseu, comeu mesmo "a melhor loura do Coliseu", como diz a letra de uma das canções? Nããããão, por acaso acho que não. Eu sou mais de morenas. Apesar de a minha namorada atual ser loura, as minhas anteriores conquistas no Coliseu eram sempre morenas..Já agora, pode falar das outras personagens que aparecem nos videoclipes? Uma delas é, precisamente, a sua namorada. Sim. É o meu grupo de amigos mais chegados, os amigos da infância. Quando eu disse que queria fazer um videoclipe alinharam logo, para a maluqueira estão sempre prontos. Eles adoram participar e já disseram que, se for para fazer concertos, também fazem. Acho que tenho tropa pronta para se juntar a mim..O Balada é responsável pelo seu próprio guarda-roupa? É sim. Tenho uma mala cheia de roupa típica regional, e cada um dos intervenientes nos clipes trouxe de casa uma cabeleira, uma camisa, umas calças... Há uma outra rapariga, a Tininha, que faz vitrinismo e também trouxe uma mala cheia, porque adora estas macacadas..Os clipes foram filmados em bananais, pastagens com vacas... os cenários são propositadamente açorianos? Sim, mas o do "Macho Tropical" nem tanto, porque a ideia era mostrar o Sol, e o ritmo e a batida pediam se calhar uma imagem mais tropical. Mas os outros elementos são mesmo açorianos, e é para continuar. Ter muitos elementos açorianos é o que faz sentido..A voz do Brassado nos clipes é particularmente grave, parece alterada. O sotaque também é empolado? Sim, por uma razão. Quando eu falo, a minha voz não é grave o suficiente para parecer de um verdadeiro açoriano que trabalha no campo, um verdadeiro açoriano rural. Também não gosto muito de ouvir a minha voz, mas acho que isso é transversal: quase ninguém gosta de ouvir a sua voz gravada..Não toco instrumento nenhum.É verdade que toca os teclados com apenas três dedos? É verdade, não toco instrumento nenhum. Tenho um teclado MIDI que ligo ao computador para mexer no programa mas toco com três dedos de uma mão, dois da outra e todos supertensos, porque nunca tive aulas. Não sei música, o que sei é de ouvido. Vou tocando no teclado até me soar bem e depois gravo..Mas as canções estão repletas de arranjos originais, sons inesperados, pessoas a arfarem... Aquilo é feito em overdub, são várias pistas que vou gravando, uma de cada vez. Posso tocar só duas notas e depois, noutra faixa, mais duas notas. Tudo junto soa como uma coisa cheia. Há partes de piano que foram gravadas todas de uma vez, mas a verdade é que não tenho escola nenhuma. O meu pai comprou-me um djembé quando tinha 15 anos e sou melómano desde pequenino. Gosto de muitas coisas e por isso a sonoridade dos beats é muito diferente. Há quem diga que sou rapper mas utilizo o rap para cantar porque não sei cantar. Estou há três anos numa escola de canto e continuo a não conseguir cantar..E no entanto, as canções funcionam. É tudo um bocado esquizofrénico. Por exemplo, quando estou a construir uma música, se tiver só uma batida e um piano, consigo ouvir um terceiro som que ainda não existe..Dir-se-ia que tem superpoderes... Não são superpoderes, é imaginação! A minha cabeça junta dois sons e começo a ouvir um terceiro, depois um quarto... é muito instintivo e naif - muito básico. Não sei o que estou a fazer, não sei fazer uma progressão de acordes..Parece um processo extremamente trabalhoso. Sim, leva muitos dias - meses, às vezes - para fazer uma música..O que surge primeiro, a letra ou a música? Crio primeiro o instrumental e depois faço a letra. Vou ouvindo a música, instintivamente digo alguma coisa e, a partir daí, começo a criar a letra. Não sei se isso é normal..Continua a achar que não sabe rimar? É falta de confiança. Tem a ver com a pressão para a conformidade numa sociedade pequena. Felizmente, o Balada é um escape - ainda por cima um que pode dizer tudo e mais alguma coisa..Resumindo muito, não sabe rimar e não sabe cantar. Os clipes foram feitos entre amigos, com roupa trazida de casa e sem planeamento. Esperava um impacto tão grande com tão poucos recursos? O humor é um veículo, e acho que grande parte da população consegue rever-se naquilo que digo. As mensagens têm um público alvo, mas apercebi-me que muitos dos destinatários não chegam a compreender bem o que está a ser dito, porque é dito com ironia, de uma forma indireta. Mas aqueles que percebem passam a ser do team Balada Brassado. Houve uma grande adesão porque vim em parte dar voz ao que as pessoas pensam, só que de uma maneira cómica..Conhece o seu público? São maioritariamente açorianos, mas também açorianos que moram nos EUA e no Canadá, na Suíça, em França... a mensagem espalhou-se um bocadinho, mas para já está muito concentrada nos Açores..Há uma contradição evidente entre a atitude fanfarrona do Brassado e as letras das canções. Por exemplo, numa delas diz que "tem medo de atuar, que não tem nada para dar". É um conflito que há entre o Francisco e o Brassado. O Francisco é muito introvertido e o Brassado está completamente à vontade. Essa foi a primeira letra que surgiu e quando faço músicas faço-as de uma forma muito instintiva. Crio um beat e a partir daí a primeira frase que me vem à cabeça serve para desenvolver a música. A música leva-me à letra e, nesse caso, começou assim: "Sou um puto que não sabe rimar, que tem medo de atuar...". Eu nunca tinha feito músicas em português, as minhas músicas eram sempre em inglês. Nesse dia fiz o beat de "A Gente Vai se Consolar" e saiu a letra toda. E depois a personagem pareceu muito mais confiante do que eu próprio sou. Nota-se uma influência do Francisco na personagem do Brassado, que depois vai-se diluindo com o andar do tempo..A personagem mais confiante é, sem dúvida, a do "Macho Tropical". É baseada em alguém que conhece? Em muita gente que conheço. É mais ou menos o grosso da população micaelense: superconfiante, superbruta... a maior parte das pessoas trabalha no campo ou no mar e tem sempre uma atitude muito agressiva, egocêntrica quase, de macho alfa. E tem que ter, porque é uma luta constante contra os elementos, contra os outros, contra os animais. Para lidar com bichos de 400 e 500 quilos, a pessoa tem que ser obrigatoriamente firme, rija, mais forte do que realmente é. Isso acaba por transparecer na sua relação com a sociedade e na sua forma de agir. Ao mesmo tempo, dificulta a vida em sociedade porque algumas pessoas não conseguem distinguir a vida no campo e a vida em sociedade. A letra é um bocado por aí, é para mostrar que há certos comportamentos ridículos, prejudiciais para quem os tem e para toda a comunidade.."Machão mas não machista".É machista o Balada? Não, pelo contrário. Ele é machão, mas não é machista..O que quer dizer o Balada quando afirma: "tens que gemer, e gemer, e gemer mais um bocadinho"? Tem a ver com o esforço, com as coisas que tens de fazer mesmo que não te apeteça ou que já não tenhas forças. Mudar de vida é difícil, ter uma vida melhor e mudar de padrão requer muito esforço. O Balada também se quer superar a si mesmo e também quer atuar um dia para milhares de pessoas e fazer coisas incríveis - ou seja: vai ter de se esforçar mais um bocadinho. Vai ter que se esfolar, é uma mensagem de incentivo à população.."A ilha vai de cu para o ar" também é uma mensagem de incentivo? É uma mensagem completamente positiva, a ilha vai ficar virada do avesso pelo bom. Ir de cu para o ar é uma forma engraçada de pôr a coisa..Tem novas canções na gaveta? Sim. Uma delas é o "Funk de São Miguel", que fala sobre a população jovem da ilha, que passa muito tempo sem ir à escola, são jovens que não se importam com o que os vai fazer aprender e ser pessoas bem formadas, estáveis e felizes. A canção põe o dedo na ferida relativamente à forma como vivem: faltando à escola, roubando bicicletas, fazendo drogas, pedindo dinheiro e ouvindo música nas suas colunas portáteis para toda a gente ouvir.