Cumpre-se um quarto de século que o hip hop português saiu finalmente da toca, sob a forma de dois discos que, a longo prazo, contribuíram para mudar a própria história da música portuguesa. Um chamava-se Rapública e, como o nome indica, era uma coletânea de rap cantado em português, coisa até então nunca vista por cá, pelo menos em disco. De um dia para o outro, à boleia de um tema chamado Nadar, o hip hop era elevado à condição de êxito radiofónico e nada mais seria igual. O outro era um EP de apenas seis faixas, com um título em inglês pouco dado a traduções, More Than 30 Motherf***s, que foi o primeiro registo de uma das banda de maior sucesso em Portugal, os Da Weasel, em cuja música se misturavam elementos do punk, do rock, do metal e, claro, do hip hop..Nesse cada vez mais distante ano de 1994, Boss AC era apenas mais um, entre os muitos artistas presentes em Rapública e Carlão ainda nem sequer o era, pois começava então a tornar-se conhecido como Pacman. Hoje, são dois dos maiores senadores do hip hop em Portugal e também eles vão estar presentes nesta noite na Altice Arena, em Lisboa, para participarem, juntamente com nomes como Black Company, Capicua, Dealema, General D, Sam the Kid, Xeg. Bomberjack ou Cruzfader, no espetáculo A História do Hip Hop Tuga, que ambos agora recordam, na primeira pessoa, nesta entrevista..Faz agora 25 anos que saiu a coletânea Rapública e que os Da Weasel editaram o primeiro disco, o EP More Than 30 Motherf***s, pode-se dizer que 1994 foi o ano zero do hip hop português?.Carlão - Não terá sido realmente o início, mas foi um ano de facto marcante, por diversas razões, nomeadamente por esses dois discos. Mas o início que levou a isso já havia começado um pouco antes..Boss AC - Acho muita piada aos Xutos, que sabem a data exata em que tudo começou, mas eu tenho muita dificuldade em fazê-lo, porque o Rapública, apesar de ter saído em 1994, começou a ser feito no ano anterior. No meu caso, a haver uma data de início, é talvez quando entro pela primeira vez num estúdio a sério, que foi no Angel Studio, ali perto do Poço do Bispo, para gravar precisamente o Rapública, algures em 1993..É uma discussão antiga, mas os Da Weasel, que nem participam no Rapública, faziam ou não hip hop?.Carlão - Nós fazíamos um hip hop muito mestiçado, com influências de muitas áreas diferentes, porque a nossa bagagem era bastante diversificada. A nossa escola era a das bandas de garagem, mas tanto eu como o meu irmão também fomos muito influenciados por alguns grupos americanos, como Public Enemy, The Disposable Heroes of Hiphoprisy ou NWA, que tinham uma linguagem de reivindicação comum à nossa música, que era assim meio punk-hardcore. E sentíamos isso não só na mensagem mas também na própria linguagem musical, que pela agressividade se aproximava bastante do punk, como acontecia com os Cypress Hill. Portanto, sim, os Da Weasel eram uma enorme misturada, mas o que eu fazia tinha muito mais que ver com o hip hop..Na altura já se conheciam?.Boss AC - Sim, porque não havia assim tanta gente a fazer este tipo de música. Aliás, eu até participo no primeiro álbum de Da Weasel..Carlão - No qual fazes aquela rima de antologia, no Dou-lhe com a Alma....Boss AC - Ainda há uns tempos estive a ver um vídeo muito antigo e mal gravado, que me trouxe tantas e boas recordações, da apresentação desse disco no Ritz, com o Sérgio Godinho e o Jorge Palma. Íamos deitando aquilo abaixo..Carlão - Literalmente, porque a sala abanava toda (risos)..Boss AC - Na altura o epicentro de tudo era o Bairro Alto e andávamos todos ali à volta, muito também por culpa do Hernâni, esse sim, um dos grandes pais do hip hop em Portugal. Gravitávamos todos à volta do Hernâni, eu, os Black Company, o próprio General D, os Da Weasel, os Blackout, a malta dos Kussondulola....Carlão - Exatamente, o Hernâni Miguel, que era agente de bué da malta..Boss AC - A ideia inicial do Rapublica até partiu dele, a propósito de um festival que organizei numa sala chamada Trópico, partiu dele o desafio de transformar aquilo numa coletânea. E vocês não entram porque estavam prestes a editar o tal disco de estreia, creio....Carlão - Acho que nem sequer fomos convidados e de facto não fazia muito sentido sermos..Boss AC - Olha, estamos a esclarecer isso agora, porque sempre pensei que tivesse que ver com isso, que tivessem optado por fazer o vosso disco em vez de participar no Rapública..Carlão - Se calhar até tens razão, já não me lembro bem, já passaram dois ou três aninhos (risos)..Como é que a indústria reagiu a esse movimento, que a dada altura explode, em termos de popularidade, com canções como Nadar ou os primeiros êxitos dos Da Weasel?.Boss AC - Provavelmente, ambos teremos diferentes versões para essa mesma história. No meu caso e das pessoas com quem me dava, especialmente numa fase inicial, tenho de reconhecer que éramos um bocadinho fechados, apesar de algum ecletismo que sempre tentei cultivar. Ao contrário dos Da Weasel, que sempre tiveram esse ecletismo muito mais evidente, ao ponto de sempre haver essa questão, há pouco abordada, se faziam ou não rap? E a resposta é sim, mas não só, porque havia sempre a questão das guitarras, das influências do rock e do punk. No nosso caso era só rap puro e duro. O primeiro indicador de que algo estava a acontecer surgiu exatamente com o êxito do Nadar. Foi algo muito acima das nossas melhores expectativas e deixou-nos a pensar que se calhar aquilo até tinha pernas para andar. Tanto que até fomos bastante assediados por várias editoras, que finalmente começaram a ter alguma curiosidade pela música urbana. Pelo rap, mas também por outras bandas de música negra, como Blackout ou Cool Hipnoise..Carlão - O primeiro disco do Abrunhosa também foi muito importante nessa altura, tal como o Gabriel, o Pensador, que começava igualmente a bater por cá. Pode-se dizer que a conjuntura estava perfeita..Faz sentido falar num hip hop português?.Boss AC - Além do óbvio, que tem que ver com a língua, nesta fase, sim, já faz sentido falar nisso..Carlão - Quando o Rapública saiu, por exemplo, percebi logo que o hip hop só poderia ganhar um estatuto condizente com o que a malta estava a fazer e a sentir, quando os próprios elementos desse movimento começassem também a produzir. Ou seja, a ganhar as ferramentas necessárias para gravar um disco. Na altura, a maior parte dos técnicos de estúdio não percebiam os códigos do hip hop, isso só foi acontecendo com o tempo, quando pessoas como o Boss AC ou o Sam de the Kid começaram também a produzir. As pessoas queriam muito que o Rapública fosse o tal boom, mas nunca o poderia ser, porque os técnicos de estúdio portugueses não ouviam hip hop e portanto não sabiam como se fazia. Agora já não é assim porque houve toda uma geração que cresceu a ouvir e a fazer hip hop com características específicas, que hoje em dia são só nossas..Boss AC - Pode parecer estranho, mas os grupos e os artistas que iniciaram este movimento cantavam todos em inglês e isso acontecia porque não tínhamos referências. Lembro-me perfeitamente de que as letras que fazíamos não passavam de cópias do que se fazia nos Estados Unidos, em que, eventualmente, mudávamos Brooklyn por Almada e pouco mais. O primeiro a assumir o português foi o General D. Todos nós achámos aquilo muito estranho, mas também começámos a fazer o mesmo. E depois houve o fenómeno Gabriel, o Pensador, que veio provar ser possível fazer rap em português. Ele também teve um papel muito importante no hip hop tuga, porque foi a partir daí que se deu o clique de cantarmos na nossa língua..Entretanto, há um momento em que o hip hop quase se torna um guardião da língua portuguesa, quando no pop-rock as novas bandas quase todas cantavam em inglês..Boss AC - Não foi quase, tornou-se mesmo o guardião da língua portuguesa, que sempre foi a nossa grande bandeira enquanto estilo musical. Não quero ser presunçoso, mas se calhar o sucesso do hip hop e a sua ascensão ao mainstream, se calhar também levou outros estilos musicais a começarem a apostar mais no português, até porque é um dado, que nada tem que ver com opiniões, que cada vez se ouve mais música portuguesa cantada em português e nem sempre foi assim. A língua é o que realmente nos diferencia, porque em termos de temáticas e de estilo acabamos por sofrer as habituais influências dos Estados Unidos. Mesmo assim e de uma forma geral, creio que conseguimos falar da nossa realidade. Eu cresci em Lisboa, na zona do Cais do Sodré, portanto não faz sentido cantar sobre outra realidade que não conheço. E há outro dado que também nos diferencia e agora já estou a falar enquanto produtor, que é o uso de samples nossos. É muito giro samplar o James Brown ou os Funkadelic, mas já não acrescenta nada. Agora se for buscar os Madredeus ou o Carlos Paredes, como fez o Sam the Kid, um Tony de Matos ou uma Simone de Oliveira, aí sim, já estamos a reinterpretar algo nosso. E também quando o fazemos com outros artistas lusófonos, como a Cesária ou o Valdemar Bastos. Isso, sim, é hip hop tuga, porque também é nossa obrigação reinventar esses artistas e apresentá-los a novos públicos. Uma vez samplei de um tema do Vitorino e numa ocasião, depois de um concerto no Rock in Rio, um miúdo veio ter comigo e disse-me que tinha descoberto a música do Vitorino a partir desse sample..Concordam que, no início, a temática do hip hop português era muito mais interventiva e que essa vertente entretanto se perdeu um pouco?.Boss AC - Não sei se realmente se perdeu, se calhar dissipou-se, porque o espetro do hip hop alargou-se bastante nestes últimos anos..Carlão - É diferente, porque na altura o hip hop era um movimento completamente underground e também muito malvisto pela maior parte das pessoas. Agora, em 2019, o hip hop é o mainstream. É assim em todo o mundo. E como toda a música de massas, há sempre uma parte que não liga tanto a esse lado mais interventivo, que continua a existir, embora não esteja tão visível..Boss AC - No início havia muito mais a questão da mensagem, é um facto....Mas não creem que isso faz parte do ADN do hip hop?.Boss AC - Sim, sempre fez e continua a fazer, pelo menos para nós os dois, mas não quero estar aqui a falar em nome de um movimento inteiro. As coisas alargaram-se e cada cabeça tem a sua sentença. No meu caso, continuo a dar muita importância à mensagem, mas isso não significa que todas as minhas músicas tenham um cariz político ou social. Quero é que as pessoas, quando ouvem um tema meu, saibam do que estou a falar. Enquanto escritor e compositor, também reconheço essa característica ao Carlão, mas isso é algo que tem mais que ver com cada artista, individualmente, e não com todo um movimento..Carlão - O hip hop não tem de ser de intervenção ou de qualquer outra coisa, tem é de ser real, no sentido em que fala de pessoas reais. Tem de ter uma voz genuína. Um artista pode não ser interventivo e ser igualmente relevante. Por exemplo, o grande legado que Obama deixou não foi o Obama Care nem nenhuma das leis que aprovou, mas sim o facto de ter mostrado que um black podia chegar à presidência dos Estados Unidos. Só isso vale muito mais do que tudo o resto..Pegando nesse exemplo, pode-se dizer que o crescimento do hip hop em Portugal também foi um fator de integração social para determinadas franjas da população, que sofriam de uma série de estigmas?.Carlão - Sem dúvida! É um trabalho que continua a ser feito, mas é impensável que os putos de hoje passem por aquilo que a nossa geração passou: na escola, no trabalho, na rua... E isso deve-se muito à música..Boss AC - As coisas mudaram muito, é verdade. Lembro-me de que nos primeiros concertos quase que tínhamos de fazer workshops, para explicar o que ia acontecer e mesmo assim muita gente não percebia (risos). Em relação à questão da integração também concordo em absoluto, especialmente porque a génese do hip hop coincide com uma altura em que alguns movimentos de extrema-direita estavam a crescer em Portugal, nomeadamente aqui na zona da Grande Lisboa. Sempre vivi em Lisboa, na Rua de São Paulo, onde a minha família era a única família negra e durante a infância nunca senti qualquer tipo de descriminação. Só mais tarde, durante a adolescência, comecei a perceber que não era nem cabo-verdiano nem português. Quando fui a Cabo Verde pela primeira vez, com 13 anos, todo contente, por ir conhecer o meu país, disseram-me que era português, mas cá não me deixavam sê-lo, diziam que era preto e cabo-verdiano. Isso criou em mim, e em muitas outras pessoas que passaram pelo mesmo, uma revolta. A adolescência já é um período difícil e com estas questões de identidade à mistura, tudo se torna mais complicado. Felizmente virámo-nos para a música para exteriorizar essa raiva, o que acabou por ser positivo, porque havia outras formas bem piores de o fazer. Enquanto cultura, o hip hop começa como uma cultura urbana negra e aqui em Portugal não foi diferente, embora também houvesse muitos brancos, mas também eles vindos, na maioria, dessas franjas mais desfavorecidas. Nem era o meu caso, que não tinha vindo de nenhum gueto, mas também sofri desse estigma de não ser uma coisa nem outra e o hip hop fez-me perceber que não preciso ser um ou outro, porque posso ser tudo..O que é que vos inspira a escreverem uma letra?.Boss AC - Eu continuo a fazer o que sempre fiz, falo sobre tudo aquilo que vejo e me desperta interesse. É impossível, num álbum de dez ou 12 músicas, falar de política em todas, mas há sempre, numa ou noutra, alguma observação da realidade, que é um termo preferível ao de crítica social, porque no fundo estou apenas a dar a minha perspetiva. Se a partir daí conseguir levantar uma discussão, por muito pequena que seja, já fiz a minha parte. Uma das coisas que eu e o Carlão já percebemos há muito tempo e se calhar alguma malta mais nova ainda não chegou lá, é a responsabilidade que temos por tudo o que dizemos. Há muita gente a ouvir-nos e temos de ter algum cuidado com o que dizemos..Carlão - Isso é muito importante, ainda há pouco tempo o Reverend, dos Run-DMC, fez um post a manifestar preocupação pelo caminho que o hip hop estava a tomar. Porque ele próprio teve um passado complicado, relacionado com o álcool e nunca fez uma única música a vangloriar esse estilo de vida..Mas esse lado mais mundano, de excessos, também está muito ligado à cultura hip hop, certo?.Boss AC - Sim, mas a qual hip hop?.Carlão - Com a ascensão do hip hop, os rappers transformaram-se nas novas estrelas pop e é natural que a esse nível surjam esses padrões comportamentais, antigamente mais associados ao rock and roll. Mas isso é só um lado da moeda, depois há outros, bem mais interessantes. No outro dia também vi um post a dizer que hoje em dia se escreve muito mal no hip hop, mas depois o autor ia buscar uma série de nomes atuais, como exemplos do que ainda se faz de bom, portanto é tudo uma questão de perspetiva..Isso não será apenas uma resposta geracional à novidade? É normal as gerações mais velhas criticarem as mais novas, apenas porque não as compreendem....Carlão - É possível, sim....Boss AC - Tudo isto é muito novo para todos, porque é a primeira vez que temos rappers a chegar à meia-idade. No rock já há muito que havia os Mick Jaggers da vida, mas no rap nunca tal tinha acontecido e de repente temos um Dr. Dre com 52 anos, um Jay Z com 49 e até um Boss AC e um Carlão com 43. Todos nós estamos a tentar perceber como é que as coisas funcionam, porque sempre se conotou o hip hop com uma certa ideia de juventude. O que é verdade, mas essa juventude também pode ser de espírito e não apenas cronológica (risos). É a primeira vez que temos uma malta adulta, com vida feita, com filhos, a fazer este tipo de música. O hip hop tem a vantagem de nos permitir falar na primeira pessoa, de relatar as nossas experiências, que agora são outras, já não passamos as noites nos Cais do Sodré a beber copos com os amigos e a fazer Freestyle. E isso transparece para a música..Olhando para trás, têm alguma letra de que se arrependam de ter feito?.Carlão - Arrepender é uma palavra forte, mas há algumas que se calhar já não escreveria da mesma forma, até porque há muitas questões em que já não concordo com o meu eu de há vinte anos. Mas isso não é negativo, muito pelo contrário, é sinal de que vamos evoluindo. E há coisas que eu dizia aos 20 anos que hoje digo de outra forma ou nem sequer as digo, mas isso faz parte dessa evolução. A minha filha mais velha terá alguma dificuldade em entender algumas coisas que escrevi e tento gerir isso da melhor forma, porque não quero que ela oiça música que ainda não tem capacidade para decifrar. Por outro lado, começa a haver uma muito maior abertura para falar de certos assuntos no hip hop, que sempre foi uma cultura de machos-alfa e agora já começa a abordar temas como as doenças mentais ou a depressão, por exemplo. Antigamente, um gajo que viesse do hip hop nunca poderia falar sobre isto. Portanto, há cada vez menos coisas para nos arrependermos de termos falado (risos)..Boss AC - Não me arrependo de nada do que escrevi, mas há muitas coisas que não escreveria hoje. E ainda bem que as escrevi, porque agora funcionam como uma espécie de foto, que me permite perceber como pensava em determinada altura..E este espetáculo, o que significa hoje, 25 anos depois de tudo ter começado?.Carlão - Estou com muita curiosidade. Ainda há pouco falávamos sobre as famosas festas do Trópico, para as quais vinha de propósito de Cacilhas. A Yen Sung passava música, havia cachupa e pelo meio ainda via o AC, os Black Company ou os Family. É toda esta história, da qual fazem parte já tantas gerações, que ali vai ser celebrada..Boss AC - Acima de tudo vai ser uma celebração do hip hop português, que já é um adulto, com 25 anos, a viver o seu momento mais criativo e de maior qualidade.. A História do Hip Hop Tuga .Altice Arena, Lisboa.8 de março, sexta-feira, 22.00 €20 a €25