Para quem conheceu o Cícero Bistrot em janeiro, graças a uma tertúlia com Christian Lynch, autor do livro Populismo Reacionário: Ascensão e Legado do Bolsonarismo, já não é surpresa o envolvimento do idealizador do restaurante lisboeta em causas várias, mas admito que fiquei impressionado quando soube que Paulo Dalla Nora Macedo participa no Values 20, ou V20, um grupo que pretende influenciar as decisões dos líderes do G20, o conjunto das maiores economias, onde estão potências tradicionais, como os EUA, o Japão e a Alemanha, e emergentes, como a China, a Índia ou o Brasil.."Cocoordenei a parte da Economia Verde num documento que passa um sinal de que existe uma sociedade civil forte nos países em desenvolvimento, nomeadamente Brasil, Índia e outros do G20. E tenta colocar na mesa uma questão que é, se esses países repetirem o modelo de desenvolvimento dos países desenvolvidos vamos continuar todos a levar o planeta ao limite. Daí a importância da reciclagem. Não é uma reciclagem cosmética, mas de massa. Por exemplo, na indústria da roupa, que tem uma pegada de CO2 importante por causa do transporte das peças, fast fashion, etc. É preciso convencer as grandes cadeias, como a Zara, H&M, etc., que sejam dedicadas a roupas recicladas. Mas, insisto, quando falo de reciclagem é em grande escala, não é a reciclagem da classe média urbana, é mesmo da grande indústria. Falo da reciclagem também de veículos, material eletrónico, coisas grandes em que não precisemos de construir outros e possamos reduzir assim a pegada de carbono. Então, essa é uma discussão importante que temos de ter", sublinha Paulo, que acrescenta que o documento de 60 páginas, com contributos de gente de várias nacionalidades, vai ser entregue aos líderes do G20 na cimeira marcada para a Índia, já em setembro. O primeiro-ministro Narendra Modi será o anfitrião, em Nova Deli, o presidente americano Joe Biden deverá estar presente e Lula da Silva também..E foi mesmo graças ao presidente brasileiro que o Cícero Bistrot ganhou notoriedade, pois em novembro do ano passado, já eleito, mas ainda antes de tomar posse, Lula passou por Portugal a caminho da COP27, no Egito, e fez questão de vir almoçar aqui, a Campo de Ourique, o que originou um prato que é agora um símbolo.."O presidente Lula veio aqui a 18 de novembro e quando tive de decidir o prato que lhe ia oferecer, pensei no carabineiro com robalo, com dendê, coco também, uma coisa muito simbólica, porque acaba por fazer essa ligação entre Brasil e Portugal. Junta o carabineiro, que é uma coisa que não há no Brasil, aqui vem de África, mas come-se muito. E tem dendê que é absolutamente brasileiro. Ele adorou", conta Paulo, sobre um almoço em que participaram Janja, a primeira-dama, Fernando Haddad, que foi o candidato derrotado por Jair Bolsonaro nas presidenciais de 2018 e a quem Lula entregou a pasta das Finanças, e algumas outras figuras, como Gilmar Mendes, juiz do Supremo Tribunal Federal, que tem casa em Lisboa..Sobre se há uma velha relação política com o presidente ou o seu partido, Paulo esclarece: "Não tenho ligação formal com o PT, aliás não sou afiliado a nenhum partido, nem nunca fui. Tenho ligações pessoais com várias lideranças do PT, nomeadamente com o Aloizio Mercadante, pela família, mas não tenho relação de militância partidária. Com o Haddad também tive muito contacto, em debates, pelas instituições com que estou envolvido no Brasil. Tenho, sim, a minha atuação na sociedade civil, faz uns 25 anos que estou envolvido nisso - copubliquei um livro com sugestões para políticas públicas em 2002 em Pernambuco, uma influência que veio do meu pai. Então, a minha ligação era enquanto cofundador de uma organização da sociedade civil no Brasil, que é o instituto Política Viva, que promove o debate. A primeira vez que Haddad e Geraldo Alckmin, hoje vice-presidente, fizeram um debate juntos foi lá no instituto, antes da pandemia, no começo de 2020. Eles eram adversários históricos. Nossa ideia foi mostrar a importância do diálogo na política em um momento em que o diálogo tinha desaparecido no Brasil"..Acrescenta Paulo - que tem um passado de empresário, de financeiro e até de banqueiro - que, em fevereiro de 2022, pouco antes de mudar-se para Portugal, assinou com outras personalidades da sociedade civil uma declaração de apoio a Lula, estávamos a oito meses das eleições. "O bolsonarismo do meio em que vivia veio para cima de mim depois da minha assinatura", lembra o economista. Foi expulso de grupos de WhatsApp de empresários e até de um conselho de entidades sem fins lucrativos foi convidado a retirar-se.."Foi um apoio fruto de muita reflexão, que Lula tinha as qualidades certas para o desafio que seria o país na terra arrasada que eu acreditava que seria o pós-bolsonarismo; especialmente pela incomparável habilidade política e sensibilidade pessoal. Ele sente o Brasil como ninguém. Assim como o entendimento de que ele era o único que poderia derrotar Bolsonaro. A partir daí, do apoio público nessa lista, a pressão social dos pares no mercado aumentou muito. A lista tinha intelectuais, artistas, académicos, mas poucos empresários. Esses chegaram para apoiar mais perto das eleições", diz, enquanto pede um segundo café, pedido que imito..A conversa está a ter lugar a meio da manhã, e o restaurante abriu excecionalmente as portas para esta entrevista. Estive cá uns dias antes, à hora certa dessa vez, e guardo boa memória de uma salada de polvo. E confesso que já experimentei o prato de carabineiro servido ao presidente do Brasil..Continuando a conversa sobre a política brasileira, pergunto a Paulo se apesar de pertencer a uma família dona de empresas sempre esteve no campo da Esquerda e a resposta é não: "A primeira vez, que votei no Lula foi agora. Nas outras duas eleições que ele ganhou votei no PSDB, votei no José Serra e votei no Alckmin. O meu pai, curiosamente, foi a segunda vez que votou no Lula, a outra foi quando ele perdeu com o Collor de Mello. Nessa altura eu era muito novo. A vida, por questões pessoais, digamos, foi-me colocando no lado mais progressista. Mas sempre estive do lado da boa política.".Já ouvi Paulo tecer duríssimas críticas a Bolsonaro, e logo no dia em que o conheci no Cícero. Explica que a presidência de Bolsonaro foi uma das razões para se fixar em Portugal: "Vim em março do ano passado, com um receio muito grande de se ele ia ou não voltar a ganhar as eleições. Aliás, muitas pessoas me perguntam se foi por causa dele que vim para Portugal, não foi só, mas foi uma consequência também. O que me entristeceu muito é que o bolsonarismo trouxe à tona o pior da sociedade. Não é Bolsonaro, mas ele amalgama, ele junta ao lado dele e traz à tona o preconceito de classe, que no Brasil é muito forte, trouxe isso para a vitrina. "Bolsonaro é libertador", disse-me um ex-amigo que virou militante bolsonarista.".Formado em Economia no Brasil, Paulo fez estudos no INSEAD, em França, e em Berkeley e na Harvard Kennedy School, nos EUA. Chegou a ser fundador de um banco, mas a relação com um dos quatro sócios correu mal, a situação da economia brasileira também não ajudou, e acabou por ter de vender em 2016. Chegou a trabalhar como financeiro em Genebra e depois em Londres na captação de investimentos e relações governamentais para investidores com interesse no Brasil, portanto já tinha experiência de vida fora do Brasil e conta ter sido pacífica entre a família - é casado com Maria Fernanda e pai de Anne e Theo - a decisão de se instalarem em Portugal.."Tomámos essa decisão no final de 2021, quando a pandemia acabou: o Theo, o mais novo, ainda não tinha ido para a escola, portanto, decidimos aproveitar para mudar. Claro que nessa altura também havia o receio de que o Bolsonaro fosse reeleito e o clima no Brasil podia piorar bastante. Em relação à escola, o Brasil reverteu uma política de ter escola inclusiva para começar a ter escola separada para crianças com necessidades especiais e isso não era bom para Anne, a mais velha, que agora está na escola pública portuguesa, onde fomos mais bem acolhidos do que em uma escola privada. Também fomos muito bem atendidos no serviço público de Saúde em mais de uma ocasião. Já sou grande devedor de Portugal por isso. Comecei lá a ficar com medo do que podia vir de um segundo Governo Bolsonaro. Um grupo a quem sou próximo trouxe para o Brasil o Steven Levitsky, o professor de Harvard que fez aquele trabalho todo sobre como todas as democracias morrem, e o diagnóstico foi terrível. Ele disse que Bolsonaro, do estudo que tinha realizado de 60 líderes mundiais, foi o que mais se tinha destacado como líder da Extrema-Direita ou fascista. Então, se houvesse um segundo Governo, sabe Deus o que é que poderia vir de ali. Escolhemos Portugal porque a minha irmã já morava cá há cinco anos e o meu pai tem também um apartamento cá. Não queria ir para um país qualquer, porque não queria perder a minha relação com o Brasil. Ao contrário de muitos brasileiros, não tenho aquela coisa do "já não aguento mais o Brasil". Não é isso. A minha questão com o Brasil foi que o ambiente estava mau", explica Paulo..Prova de que continua interessado no futuro do Brasil são as iniciativas no restaurante com o mote das relações luso-brasileiras. Há, por exemplo, palestras filmadas com personalidades como Durão Barroso, o antigo presidente da Comissão Europeia, José Luís Carneiro, o ministro da Administração Interna, Gilmar Mendes ou Luís Faro Ramos, embaixador em Brasília, "o único português no almoço do presidente Lula aqui", destaca Paulo. O projeto #Gentedeláedecá resulta de uma parceria da Associação Portugal-Brasil 200 Anos, de José Manuel Diogo, e que de início teve publicação no Jornal de Notícias e na Folha de São Paulo..O restaurante em Campo de Ourique também é galeria de arte e em destaque estão obras de Cícero Dias, pintor modernista, pernambucano como Paulo, e que até é homenageado no nome do Bistrot. "O Cícero foi o pintor do primeiro quadro que comprei na minha vida, em 1998. E aí comecei a aprofundar, a ter uma admiração por ele, por essa história de ele ter saído do Brasil muito cedo, com 27 anos, mas nunca ter deixado de ser brasileiro. Quase que se tornou meio que um embaixador do Brasil e isso reconhece-se nos catálogos dele, ele é reconhecido como o pintor brasileiro que mais levou o nome do Brasil para fora, porque morou 60 anos fora, teve um período em que trabalhou cinco anos no Serviço Estrangeiro Brasileiro, aqui em Lisboa. Quando foi resgatado do campo de concentração, foi mandado pelo Governo brasileiro para trabalhar como adido cultural. Então, tinha uma admiração pela história dele pessoal, porque ele nasceu num engenho de açúcar, em 1907, filho do dono do engenho, tinha tudo para ser um vice-rei lá, mas apesar disso desenvolveu uma consciência social bastante forte", conta o antigo banqueiro, que tem hoje 15 quadros do famoso conterrâneo, que se cruzou com Pablo Picasso em Paris, amizade que fez do espanhol padrinho da filha do artista brasileiro..Paulo chegou a conhecer o pintor, pouco antes de este morrer, quase centenário: "Conheci-o em 2002 e foi muito interessante, ele morreu em 2003. A diferença de idades era grande, pois eu nasci em 1975, mas conheci-o porque a Prefeitura de Recife queria levá-lo para uma inauguração. Eles fizeram a Praça do Marco Zero com a Rosa dos Ventos, que foi Cícero que desenhou. A Prefeitura queria levá-lo lá, mas não tinha condições, porque ele já estava com idade e precisava de ir em primeira classe. Então o vice-prefeito, que me conhecia dessa área do engajamento político, pediu-me ajuda. Nessa altura, tinha a empresa da família, a Nordeste/Transbank, mas tinha também fundado um projeto chamado Arte e Vida, que dava educação artística a crianças de uma favela em cima do mangue, a 300 metros da Praça do Marco Zero. Essas crianças tinham aulas de literatura, pintura, artes, numa casa perto da tal praça. Contei isso a Cícero e ele ficou encantado, acabou até por ir dar uma aula, passou três horas a falar de arte, o que só fez crescer a minha admiração. Um dos miúdos que o ouviu é hoje professor da Academia Militar e diz que aquela aula lhe inspirou.".A conversa mostra como Paulo se orgulha da sua condição de pernambucano. "Pernambuco tem uma história longa de ligação com as artes. Fomos revolucionários, mesmo no sentido de expulsar os portugueses, naquela altura, da Revolução Pernambucana de 1817, cinco anos antes da independência. Aliás, há até a história do Exército Brasileiro ter nascido em Pernambuco, na Batalha de Guararapes contra os holandeses, no século XVII. É um Estado muito cultural, tem muita arte, muita cultura", afirma..Das cidades do nordeste, diz que Salvador é maior economicamente, mas que "Recife tem um caldo cultural maior, além, por esse caldo cultural, de ter um centro de tecnologia fortíssimo. É o Porto Digital, criado há 20 anos, que agora já está em Portugal. É um centro de tecnologia que desenvolve até para a Microsoft. E quando Lula veio cá, já como presidente, em abril, foi inaugurado o CESAE, em Aveiro, e a ideia é que se crie um centro onde as empresas vão nascendo lá dentro e depois se espalhem. E é interessante, porque as empresas que lá estão são empresas brasileiras que querem vir para cá para criar novos sistemas e softwares para a Europa. Acho que Portugal tem de entender esta oportunidade, porque importante não é atrair o investidor brasileiro para investir cá, para fazer ou reformar apartamentos, é atrair para que ele crie negócios modernos para toda a Europa, usando Portugal como base. Esse outro perfil de empreendedor brasileiro também faria bem para Portugal.".E confirmando a ideia de que Portugal está sempre a surpreendê-lo, Paulo partilhou comigo por WhatsApp, mesmo quando concluía a escrita deste artigo, uma fotografia com a legenda: "Tem coisas que só em Lisboa" - o Papa Francisco no meio da multidão no Parque Eduardo VII a abençoar a pequena Anne, tocando-lhe na testa. Momento de "grande emoção" para a família, acrescentou o católico Paulo, que fez questão de participar nesta Jornada Mundial da Juventude na capital portuguesa..Terminamos, à mesa do Cícero, a falar sobre economia. O Brasil está no G20, mas com o 12.º PIB, enquanto em 2011, quando Lula deixou a presidência pela primeira vez, tinha chegado à posição seis. Paulo, que além do Cícero Bistrot tem outros investimentos, está otimista com o futuro do país e depois de nos despedirmos até me enviou um link para um artigo publicado no dia seguinte à nossa conversa pela revista Economist, a tal que um dia pôs na capa o Cristo Redentor a descolar, agora dando conta do renovado interesse dos investidores no Brasil.."Os desafios do Brasil são enormes, e envolvem também a economia, mas é preciso ter o diagnóstico correto da ordem dos problemas: com a bagunça institucional que a força de rutura que nos governa [o bolsonarismo] trouxe, é impossível um Governo implantar um programa económico minimamente eficaz, seja ele qual for. Assim como da periferia política do mundo, lugar onde nos encontramos, não se influencia as decisões globais. O presidente [Bolsonaro] não era recebido por chefes de Governo ou Estado em nenhuma capital europeia relevante, e desde 2021 perdeu a porta dos EUA. Esses são fatos, goste-se ou não deles", escreveu Paulo na publicação Congresso em Foco no final de dezembro de 2022, vésperas da tomada de posse de Lula, que aconteceu a 1 de janeiro. Desde então o novo presidente brasileiro esteve em Portugal, também em França, Espanha, Inglaterra e Japão, e já foi recebido por Joe Biden na Casa Branca e por Xi Jinping em Pequim. "O Brasil está a mudar de novo, para melhor, e a fazer ouvir a sua voz." Também Paulo espera fazer ouvir a sua, agora de forma muito ambiciosa, quando for entregue o tal documento do V20 aos líderes mundiais..leonidio.ferreira@dn.pt