Quando a mãe de uma criança, hoje com 6 anos, fugiu com o filho para parte incerta, o pai entrou em pânico. A progenitora haveria de regressar a Portugal, mas desde então que sempre que visita o menor é vigiada sem o saber. "Como já tinha fugido uma vez para o continente asiático, ele tem muito medo de que volte a acontecer. É um trabalho de vigilância de 24 horas sobre 24 horas", conta ao DN Paulo Perdigão, detetive privado há 13 anos. Os casos que envolvem menores são dos trabalhos que mais têm surgido nos últimos anos nos escritórios dos investigadores privados - é assim que preferem ser chamados. Querem que a profissão seja regulamentada, como acontece em Espanha, e querem ser autorizados a tirar fotografias e a apresentá-las como prova. Não é que não o façam, mas sabem que estão a violar a lei..Paulo Perdigão tem 47 anos, é presidente e um dos fundadores da Associação Nacional dos Investigadores e Detetives Privados Profissionais (ANIDEP), uma entre as várias associações de investigadores particulares no país. No total, os detetives particulares não chegarão a uma centena, entre os que estão coletados e os que o fazem à margem das associações..Recebe-nos no seu escritório em Lisboa, na zona da Penha de França. Calças de ganga e t-shirt vermelha, um homem comum, um gabinete peculiar: nas paredes há vários diplomas a indicar que ali se senta um detetive privado. Há lupas e walkie-talkies em exposição e câmaras de vídeo à James Bond, hoje peças de museu, ultrapassadas pelo aparelho que todos trazemos no bolso: um smartphone com o qual é possível fotografar e gravar, sobretudo sem dar nas vistas. "Nunca chamar a atenção" elenca Perdigão como a regra número um de quem ganha a vida a investigar a vida dos outros. Por isso, o detetive acede em tirar fotografias, mas sem mostrar o rosto.."O meu holofote é a sombra", afirma, e esta é a única vez durante a conversa em que arrisca uma tirada cinematográfica. A investigação privada em Portugal ainda é terreno movediço, e o investigador sabe onde não deve pisar..Apesar de garantir que nem ele nem os cerca de 30 associados da ANIDEP recolhem imagens sem autorização, a verdade é que sem uma prova não existe pagamento. A maior parte dos detetives tiram fotografias e entregam-nas ao cliente. Perdigão sublinha que "ensina a fazer" - que o seu serviço será mais de consultadoria - e que prefere combinar "um flagrante", o que em caso de infidelidade já o obrigou a levar segurança, não para o cliente mas para o homem com quem a mulher o traía..Descobrir traições está no topo da lista.Paulo Perdigão não foi sempre detetive privado. Começou esta nova carreira depois de ter estado ligado à segurança privada e às cobranças difíceis, onde ganhou experiência e prática a encontrar devedores. Apesar de ainda lhe pedirem para localizar pessoas ou para investigar traições empresariais - como o roubo de receitas secretas -, reconhece que 70 % da sua atividade está ligada a "assuntos matrimoniais". Tanto o procuram homens como mulheres, normalmente com "casamentos de mais de 15 anos"..O que leva alguém a pagar a um desconhecido para provar que está a ser enganado? "O despeito. Muitas vezes as pessoas nem sabem o que vão fazer com aquilo [a prova], mas querem confrontar a outra parte", explica. Não é psicólogo, mas há casos que após mais de uma década a trabalhar ainda o surpreendem, como o cliente que lhe ligou a chorar convulsivamente após ter tido a confirmação de que a mulher o traía. "Paguei as férias, sou um homem de palavra e por isso ainda vamos viajar os dois", terá dito ao detetive. As férias eram as do ano seguinte...."No fundo, as pessoas querem é ter a certeza. Entram aqui já constrangidas", assume. A função do detetive é, também, a de desbloquear a situação incómoda. Pede as informações básicas, como nome, morada de casa e do emprego e uma foto de quem é preciso vigiar - as redes sociais facilitam muito a identificação..Paulo Perdigão, com escritório em Lisboa e uma equipa "de seis pessoas", tem uma tabela de preços fixa, o que nem sempre acontece com outros detetives. Cobra 350 euros por oito horas de trabalho (serviços na Grande Lisboa), fora da cidade será o mesmo valor mas por seis horas, além do pagamento das despesas. Há um valor mínimo para saídas pontuais - "os piquetes" -, que Perdigão não quis revelar mas que incluirá a "taxa de urgência". Para localização de devedores, o valor mínimo é de 2500 euros e o tempo estimado de investigação rondará "um mês a mês e meio"..Como em qualquer serviço, os mais comuns estão tabelados, por isso as "condições gerais para provar infidelidade" exigem um prazo mínimo de cinco dias, embora o "prazo médio para um resultado mais eficaz" sejam os 15 dias. Em Lisboa, o valor para comprovar uma traição pode chegar a 1750 euros.."Julgam que somos bandidos".Perdigão assume que não é um trabalho mal pago, mas garante que "preferia ganhar menos e estar regulamentado". "Em Espanha, por exemplo, um detetive privado cobra 70 euros por hora. Em Portugal, acho que poderíamos apontar para 40 ou 60 euros", propõe o presidente da ANIDEP. Se a profissão for regulamentada, os detetives particulares poderão "registar e comprovar os factos sem que nada nos possa ser incutido em relação a responsabilidade legal", diz Perdigão. Esta é, por agora, a luta destes investigadores..Um detetive pode ainda ser contratado para entregar documentos pessoais ou do tribunal. "Mais do que notificar a pessoa, é ter a certeza de que esta recebeu o documento; mesmo que não queira recebê-lo em mãos, podemos deixá-lo aos pés", conta. Também há quem pense que um detetive privado serve para fazer o trabalho sujo.."Há pessoas que julgam que somos piratas informáticos, outras pensam que somos bandidos - pedem-nos cobranças, para bater em pessoas. A mim já me fizeram conversas muito feias", revela. Garante que não comete crimes, apesar de já ter testemunhado alguns. "Já fui obrigado a interromper um trabalho - um caso de infidelidade -, era um guarda-noturno, e percebemos na vigilância que ele traficava droga. Não fiz a denúncia às autoridades, mas avisei a cliente", revela. "O nosso contrato é explícito: não aceitamos trabalhos que envolvam perigo de vida, atos ilícitos, e também não aceitamos serviços em que o alvo principal seja um agente da autoridade.".A figura do detetive privado em Portugal, é antiga, e há nomes no mercado que se tornaram lenda. São sempre os mesmos e alguns já tiveram problemas com a justiça - tudo o que Perdigão não quer que aconteça com os seus associados. "Há quem use matrículas falsas, quem agrida polícias... um detetive não é isto", sublinha, afiançando que o modelo que rege a ANIDEP é o de Espanha, onde é necessário concluir uma licenciatura para se fazer investigação privada. No país vizinho é permitido aos detetives privados usar localizadores, por exemplo, e estes são chamados a tribunal como testemunhas. "Apresentam relatórios, assinam documentos, é uma profissão regulamentada", aponta Perdigão..Do outro lado da fronteira, os tribunais não só reconhecem a figura do detetive privado como validam as provas apresentadas. Aconteceu em outubro do ano passado, na província de Ávila, onde um juiz foi suspenso de funções após ter aumentado o valor da pensão de alimentos a um pai que descobriu, depois de ter contratado um detetive particular, que aquele juiz tinha uma relação amorosa com a sua ex-mulher. A sentença foi anulada..Mulheres detetives e aspirantes.À semelhança de tudo o que pode constituir uma ilegalidade, Paulo Perdigão nega que use, no seu trabalho, algo mais além dos seus olhos e da sua paciência. Mas sabe que há quem coloque aparelhos "espiões" - e ilegais - em telemóveis e computadores. Em plataformas como o OLX é possível encontrar anúncios de detetives privados que oferecem equipamentos como "aparelhos de escuta para conversas em ambiente empresarial ou familiar", bloqueadores de sinal de telemóvel ou "softwares espiões para telemóveis e computadores". O presidente da ANIDEP garante que não usa nenhum destes aparelhos, e o mesmo afirma Teresa Martins, investigadora privada a trabalhar no centro do país..A história desta investigadora de 55 anos começa na GNR, onde trabalhou durante duas décadas como guarda florestal, categoria entretanto extinta. Habituada a estar no terreno, quando a função foi eliminada dedicou-se à agricultura, mas na zona sabiam-na desenrascada e com conhecimentos da lei, então começaram a pedir-lhe favores.."Comecei aqui nesta sociedade de advogados a fazer recados, um pouco de tudo. Não demorou muito tempo para que me pedissem trabalhos de investigação", conta a mulher, voz rouca e grossa, trato humilde que esconde uma perspicácia que acaba por lhe ser rentável. Teresa gosta disso, de se sentir útil e de resolver mistérios.."O meu primeiro trabalho de investigação foi em 2011, e foi logo uma morte", começa por contar. Um jovem caíra de um telhado e a mulher queria o dinheiro do seguro da empresa. "O marido era empregado de um homem mas não morreu enquanto trabalhava, e foi isso que eu consegui provar", conta a detetive. Apesar de fazer parte da ANIDEP, admite que usa o smartphone para tirar fotografias dos "alvos". Tem dois ou três serviços por semana e muitas vezes encontram-na através do site da associação que tem uma lista com o nome, a zona e o contacto de cada detetive associado..Foi desta forma que um cliente a contactou - queria saber se a mulher estaria a traí-lo. Passados alguns dias, Teresa recebeu um novo contacto. Desta vez de uma mulher, que desejava saber se estava a ser enganada pelo marido. "Quando percebi tinha como clientes os dois. Não aceitei nenhum", conta Teresa Martins, que também prefere não mostrar o rosto..Com esta investigadora trabalha muitas vezes um advogado, que na gíria dos detetives se chama "aspirante". São pouco experientes e "nunca podem trabalhar sozinhos", avisa Paulo Perdigão..Os casos complicados de regulação do poder paternal são os que mais têm levado à procura do serviço de Teresa Martins. Um pai que quer residência alternada "só para chatear" a mãe, mas que não tem tempo para estar com a criança. Teresa segue a rotina de ambos, regista, descobre que o pai nunca vai buscar o filho à escola - mas impede a mãe de o fazer. "Tudo isto pode ser levado em conta quando o juiz for decidir o regime [de guarda] definitivo", diz a detetive. Mas como podem estas provas - obtidas de forma ilegal - ser utilizadas em tribunal?."Efetivamente não se pode usar porque os juízes não aceitam, e não aceitam porque, como se sabe, esta é uma área que pode colidir com os direitos fundamentais das pessoas", explica o advogado que trabalha com Teresa Martins. Não quer que o seu nome seja referido, uma vez que poderia ser impedido de exercer advocacia. Sublinha, contudo, que "os advogados sempre utilizaram provas cuja origem se desconhece, basta que a prova suscite a dúvida para pesar na decisão", refere.."É preciso ter paciência de Jó"."Alguns juízes vão aproveitando algumas fotografias. Comigo nunca aconteceu. Quem me dera...", admite o aspirante a detetive, que reconhece que o trabalho de Teresa Martins já foi fundamental em muitos dos seus casos, mesmo quando o assunto são infidelidades. "As questões domésticas também importam resolver, porque a seguir a isso há divórcios que levam a pedidos de indemnização. E tem de haver prova. Em tribunal temos de provar, aquilo que não pode ser provado não tem valor, é só conversa", diz o advogado..Também usa o trabalho da detetive para investigar os seus próprios clientes. "Nem sempre o arguido nos conta a verdade. Socorro-me muitas vezes da investigação para ter acesso ao que eles não dizem", revela. É um serviço caro, mas Teresa Martins garante que, no seu caso, cobra aquém dos honorários definidos pela maioria dos detetives com vários anos de atividade. "Sei que há quem cobre para um trabalho de dois dias três ou quatro mil euros, eu cobro um terço disso", afirma..Inspirada pelo modelo espanhol, Teresa Martins chegou a frequentar o curso em Espanha e fez alguns exames, como o de Balística. Durante a formação teve de descobrir a causa da morte de uma pessoa acabada de ser retirada de um rio. "Nem todos aguentaram. Eu segurei o vómito", recorda. Também estudou Criminologia, Direito - sobretudo questões relacionadas com regulação do poder parental. "Não é fácil, é um curso muito completo e exigente", diz. Teresa quer concluir a sua formação e talvez rumar a Espanha para trabalhar na área sem temer as consequências legais daquilo que faz. Também desmistifica qualquer glamour associado à profissão. "O que é preciso ter é paciência de Jó, pernas para andar muito e capacidade para estar sentado várias horas", descreve..Na zona onde mora, o trabalho desta detetive já é reconhecido e Teresa conta que já aconteceu uma juíza pedir-lhe conselhos e até um cartão profissional, "para o caso de precisar dos meus serviços"..É caso raro, uma vez que juízes, advogados e polícias não gostam de saber que existem pessoas a investigar à margem da lei. O próximo passo é que o trabalho que fazem possa ser admitido na barra do tribunal, quer os juízes gostem ou não daquilo que os detetives fazem..Detetives pedem reunião com os partidos. Só PSD respondeu.A atividade de detetive privado profissional não se encontra regulamentada no ordenamento jurídico português, mas tem um CAE próprio - o 80300 (atividades de investigação) e, como tal, é reconhecida para efeitos tributários - e os detetives com quem o DN conversou passam recibo dos seus serviços..A ANIDEP pediu a uma sociedade de advogados que elaborasse um parecer jurídico com vista à regulamentação da profissão, o qual passa pela definição das funções e dos requisitos a cumprir, além das matérias deontológicas, nomeadamente do sigilo profissional e ainda as limitações ao exercício da atividade. O objetivo é que as informações obtidas "possam ser levadas a juízo e valoradas", e para isso será necessário que "os meios técnicos e humanos" sejam considerados admissíveis, "desde que cumprindo os requisitos da lei para a sua obtenção e possuindo as eventuais licenças ou autorizações, como é o caso da montagem de sistemas de videovigilância", refere o documento assinado pela Costa Carvalho Advogados Associados e que o DN consultou..A associação tem pedido para se reunir com os partidos políticos para debater a regulamentação da profissão e já o fez nesta legislatura. "Relembrámos ao Livre que, tal como eles, também somos uma minoria. Mas não obtivemos resposta, a não ser do PSD", disse Paulo Perdigão, presidente da ANIDEP.