O que faz de CR7 um monstro dos relvados. Treino, genética, inteligência e força mental
Já não há palavras para descrever Cristiano Ronaldo e a sua importância para o futebol mundial. Com 36 anos e 131 dias bateu dois recordes no jogo contra a Hungria (3-0), no Euro2020. Além de marcar dois golos, tornou-se no único jogador da história a jogar (e marcar) em cinco europeus e aquele que mais golos marcou em fases finais (11). Marcas que elevaram a lista dos recordes quase à meia centena e colocaram o mundo a falar da sua longevidade e do que ele pode fazer à Alemanha (sábado).
CR7 está no topo praticamente desde que começou a jogar em 2002. "Ronaldo não é só físico e a ciência não explica tudo", diz Carlos Bruno, ex-coordenador do Laboratório de Otimização do Rendimento do Sporting, de onde saiu há dias, que assistiu e ajudou ao crescimento do "monstro dos relvados".
"Não há segredos. Há um conjunto de fatores que contribuem para este exemplar perfeito de atleta e de futebolista que é o Cristiano Ronaldo. O primeiro é a genética e nisso só tem mérito quem o fez. Depois a genética alia-se a alguma sorte. E a sorte, no caso dele é muito trabalho e muita inteligência e perspicácia. Depois a questão mental. Se tivesse só físico e talento ele não seria o monstro que é. Daí a resiliência, motivação, o prazer e crença nele próprio terem a sua dose de responsabilidade no sucesso. Por fim o chamado treino invisível. A nutrição, o descanso, o contexto social, o estilo de vida fora de campo", resumiu o preparador físico, que esteve 23 anos ligado aos leões.
Para Carlos Bruno, "Ronaldo é único". E claro que merecia ser "objeto de estudo", mas para ser algo credível ele tinha de se colocar ao dispor da ciência. Ou seja participar e estar disponível para testes e análises, algo que não é compatível com a carreira. Tem havido muitos estudos indiretos e há hoje um conjunto de disciplinas que já estudam a performance do capitão da seleção, seja na área da fisiologia, fibras musculares, nutrição, descanso e recuperação como da psicologia (mentalidade para a competição). "Ele representa isso tudo na perfeição. Era preciso um curso completo", atirou o preparador físico. Na verdade já existe um curso Cristiano Ronaldo ... mas na área da sociologia, na Universidade de Okenagan (Canadá).
Em 2011, uma análise científica financiada pela Castrol mostrou que CR7 tinha menos 3% de gordura do que um supermodelo, um diâmetro de coxas maior do que a média - 61,7 centímetros - e gémeos menos volumosos do que o normal. Conclusões inócuas e que contribuíram pouco para o conhecimento geral da performance daquele que já era o melhor do mundo.
Com mais de 96 mil minutos nas pernas e uma média superior a 5 mil minutos jogados por época, o descanso tornou-se "essencial" na sua longevidade. "O nosso corpo tem uma autorregulação e cria uma reparação das células e vai melhorá-las. O corpo é uma máquina perfeita que ao ser agredida com exercício cria mecanismos para aguentar a agressão. Daí a recuperação e o descanso ser muito importante e precisar de estar conforme e equiparado ao desgaste. É aí que os chamados músculos absorvem o treino", explicou Carlos Bruno, admitindo que seja por isso que o estudo do Entertainment and Sports Programming Network conclua que Ronaldo tem "músculos esponja".
O descanso é o principal fator da recuperação (reparação), mas não o único. O frio - banhos de gelo, corrida na passadeira dentro da piscina, câmara hiperbárica (gelada) e terapia aquática - e a nutrição (minerais, antioxidantes e proteína) também são fundamentais. Cristiano faz cinco refeições diárias. Depois de fazer 30 anos, o capitão da seleção alterou a dieta e os hábitos de treino fora dos relvados para perder, em média, um quilograma por ano e ganhar agilidade.
As mudanças físicas foram evidentes com o passar dos anos. Mas nem tudo se resume à exuberante musculatura e abdominais definidos, que arrancam suspiros e comentários: "Ele foi direcionando o treino para aquilo que ele sentia que o seu jogo precisava. Como ele disse há dias, adaptou-se. Todos sabem que o Ronaldo do Sporting e do Man. United não é o mesmo do de hoje e do Real Madrid. Se quisesse transportar muito a bola e ir no um para um possivelmente não estaria ao nível que está nem seria o goleador que é."
Um dos aspetos mais relevantes centra-se na velocidade (treina várias vezes com Francis Obikwelu, medalha de prata nos 100 m, em Atenas 2004) e na força de pernas. Os especialistas em performance e biomecânica dizem que as pernas de CR7 suportam forças 5 G, ou seja, cargas de força brutais, essenciais num remate a mais de 120 Km por hora, quando em velocidade precisa travar, mudar de direção ou quando têm de absorver uma queda.
"Quando ele faz aqueles saltos gigantes (chegou a marcar golos com uma impulsão de 2,93 metros), o busílis está na descida e não na subida. Ele desenvolveu uma técnica que para mim é um mistério ... cai apenas sobre uma perna, não sei como os joelhos e os tendões aguentam. Num salto de mais de um metro, o peso do corpo aumenta sete ou oito vezes (graças a atração gravítica) agora imagine aguentar quase o peso de sete ou oito ronaldos num joelho. É incrível, incrível...", desabafou o seu antigo preparador físico.
Ronaldo é visto hoje como o expoente máximo do treino. Ficaram célebres as fugas do jogador para o ginásio para fazer exercícios às escondidas, nos primeiros tempos do Sporting, assim como uma autoconfiança muito grande, sem ser egocêntrico e narcisista. "Uma personalidade virada para o eu faz parte dos génios e já em miúdo queria fazer as coisas à maneira dele e dizia: "isto é bom para mim..." E nós tínhamos de andar sempre a dizer para ter calma, que não podia passar a tarde a bater livres na véspera do jogo porque cansava a perna e isso podia-se refletir no jogo dele e levar a lesões. Mas na cabeça dele ia melhorar com o treino. A mente dele já andava uns anos à frente daquilo que as pernas conseguiam fazer aos 16 anos", contou.
Era franzino quando chegou ao Sporting, mas aos 12 anos todos são franzinos, segundo o antigo preparador físico dos leões. A diferença é que Ronaldo era um franzino com muito talento: "Talento cognitivo e técnico que ele aprimorou com trabalho. Todos acreditávamos que ele fosse dar um grande jogador, mas ninguém podia imaginar o que hoje é uma realidade, é o melhor ou o segundo do mundo e talvez o melhor de sempre", confessou ao DN.
Uma ideia partilhada por Laszlo Bölöni, o treinador campeão pelo Sporting (2001-02) que o chamou à equipa principal pela primeira vez. "Não foi uma surpresa ver onde ele chegou, mas ninguém poderia dizer naquela altura que podia ser o melhor do mundo. Ele tinha algo que mais ninguém tinha, uma mentalidade própria de um gladiador. Alguém muito forte, mas a querer sempre mais. Mas dizer que seria o melhor de todos os tempos era coisa para te internarem", confessou o romeno ao DN, lembrando que foi olhado de lado e até ofendido quando disse que Ronaldo ia superar Figo e Eusébio.
Ronaldo tinha 17 anos, seis meses e nove dias quando a 14 de agosto de 2002 substituiu Toñito num jogo com o Inter Milão para a Liga dos Campeões. O que viu nele? "Depois de o ver num jogo dos juniores, não tive dúvidas de que ele tinha de ser integrado no plantel. Tinha capacidade física, era muito rápido e tinha boa técnica. Pesava uns 60 quilos e achei que ia ter muitos problemas com centrais corpulentos, mas isso era um problema com solução como hoje se vê", disse o romeno.
Quando CR7 ganhou a sua primeira Bola de Ouro (2008), convidou-o para a cerimónia e o romeno ouviu o seu agradecimento público. "Não sei porque me agradeceu, sim... eu apostei nele, mas não sou responsável pelo seu sucesso. Talvez tenha sido por o ter mandado apanhar as bolas à mata quando fazia o que os mais velhos lhe pediam em vez de me ouvir a mim ou por lhe dizer que um drible ou dois são giros e importantes, mas cinco são demais", ironizou, feliz por CR7 ter sido "inteligente a encontrar o seu caminho".
Um caminho que fez dele um extraterrestre do futebol e com direito a uma galáxia e um recorde. Chamada de Cosmos Redshift 7 - CR7 em homenagem ao português -, a galáxia foi descoberta por uma equipa liderada pelo astrofísico David Sobral, em 2015, é três vezes mais brilhante do que detentora desse recorde à altura.
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