O que é que Tchaikovsky tem que ver com Putin?

Publicado a
Atualizado a

O maestro Pedro Amaral lançou no Facebook um alerta relacionado com a guerra que a Rússia está a fazer na Ucrânia que nos deve pôr a pensar: "A condenação intransigente da invasão não pode, em nenhum caso, confundir o Povo russo, a sua Arte e a sua Cultura com a insanidade dos seus dirigentes políticos." Povo, Arte e Cultura, assim mesmo, conceitos escritos com maiúscula, pois qualquer um deles é muito anterior a Vladimir Putin e continuarão a existir com toda a pujança quando o presidente russo for só uma figura dos livros de História, como o são hoje os czares ou Lenine e Estaline.

Perante uma invasão que, independentemente dos argumentos e explicações, continua a matar ucranianos, as sanções económicas em geral à Rússia são justificadas, e mais ainda às figuras próximas do poder, como é o caso de muitos oligarcas, cuja própria designação denuncia que as fortunas que possuem nasceram em boa parte da relação estreita com o presidente a quem se pretende fazer mudar de rumo. Mesmo cortar laços com algumas personalidades que sempre foram apologistas de certa conceção de Rússia e beneficiaram disso pode ter justificação no contexto atual. Mas é errado pedir aos russos que assumam posições condenatórias do seu país para salvar empregos, ou simplesmente para serem deixados em paz. Por exemplo, em Portugal a comunidade russa é um excelente exemplo de integração, tal qual, aliás, a comunidade ucraniana. E se há quem goste de Putin, outros nem por isso, relembro até o caso dos organizadores de um protesto cujos nomes por erro foram fornecidos à embaixada russa. Não quero que no meu país, onde as pessoas se organizam para enviar ajuda para a Ucrânia ou acolher refugiados, se insultem imigrantes por serem russos. Olhemos para os generosos médicos russos a trabalhar em Portugal que junto com os colegas ucranianos responderam ao apelo da Ordem para criar um Gabinete de Apoio Humanitário aos refugiados.

Talvez seja nos Estados Unidos que estejam a acontecer os casos mais escandalosos de russofobia, ao ponto de Tyler Cowen, colunista da Bloomberg, falar de um novo mccarthismo, em referência ao senador americano que, no início da Guerra Fria, via agentes soviéticos em todo o lado e sobretudo em Hollywood, promovendo listas negras. Sobre o sofrimento de quem deixou então de poder trabalhar, um bom filme para perceber o que se passou é O Testa de Ferro, de Woody Allen.

Cowen, assumindo-se anti-Putin e favorável a uma vigorosa resposta do Ocidente, denuncia a cancel culture e afirma que "exigir aos artistas e aos atletas que falem publicamente contra Putin é antiamericano". Alguns não o farão por patriotismo, outros por medo de retaliação, mas, de qualquer forma, questiona, "quais são as provas de que boicotar artistas russos no estrangeiro vai ajudar a Ucrânia?".

O economista que escreve para a Bloomberg vai mais longe na sua argumentação e diz ter mulher e filha nascidas na ex-União Soviética e interroga-se se terão também elas de pronunciar-se politicamente se quiserem trabalho ou contratos.

Da soprano e do maestro dispensados pela Met, a companhia de ópera de Nova Iorque, até à exclusão do representante no Festival da Eurovisão e da seleção no Mundial de Futebol, muitos são os russos afetados por decisões mais ou menos administrativas, cegas. E a isso há que somar boicotes ou recusas, por exemplo, de atletas de outros países, não apenas da Ucrânia pois, em competir com russos. Há diferentes níveis de racionalidade presentes, mas pelo menos existe sempre a intenção de punir qualquer tipo de apoio a Putin e à invasão, ainda que silencioso.

A irracionalidade, porém, também por aí anda. Um exemplo: a Orquestra Filarmónica de Zagreb cancelou dois concertos de obras do russo Tchaikovsky, um compositor do século XIX, famoso por O Lago dos Cisnes ou O Quebra-Nozes. É como uma livraria na Europa ou na América deixar agora de vender os romances de Dostoiévski. Nenhuma vida se salvará assim na Ucrânia nem tal fará a paz regressar. Pensar que se pode cancelar a colossal cultura russa ao mesmo tempo que se apela aos russos para forçar Putin a mudar, ou a mudar-se, não faz sentido.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt