O que acontece a quem se perde de si? Esta é uma peça sobre Alzheimer
Não sabe onde deixou o relógio. Suspeita que o andem a roubar. Não reconhece o genro. Não se lembra que a filha se divorciou. Não sabe em que casa está. Está confuso? Está esquecido? O que está a acontecer a este homem? O Pai é uma peça escrita pelo francês Florian Zeller que nos coloca na cabeça de André, um homem com uma idade já avançada que começa a revelar sintomas de Alzheimer. Com encenação de João Lourenço, no Teatro Aberto, em Lisboa, onde se estreia amanhã, o espetáculo é protagonizado por João Perry que, em mais uma das suas grandes interpretações, nos mostra um homem confuso pela doença e mais confuso ainda por não saber bem o que lhe está a acontecer.
Quando aceitou o papel, depois de ler a peça, a primeira coisa que o ator de 76 anos fez foi procurar informar-se sobre o Alzheimer. E quando mais lia mas lhe parecia que tinha todos os sintomas. "Mas depois consegui decorar o texto, por isso tive que concluir que não tenho a doença. No entanto tenho esse receio de perder a memória", admite Perry. "É assustador pensar que se está com esta espada em cima da cabeça, porque pode acontecer a qualquer pessoa e não tem idade de chegada."
Nos ensaios, conta o encenador, o ambiente chegou a ser bastante pesado. "Ficávamos um bocadinho vazios. Nós, eu e João Perry, porque já temos alguma idade, os mais novos porque ficaram a pensar neste assunto. Quase todas as famílias têm alguém mais velho com problemas de memória e fazendo grandes confusões. A peça é muito atual, foca um problema muito comum, da demência e da perda de memória, mas em vez de se focar, como outras peças, na família, mostra principalmente o doente, o que é que ele sente, aquilo que ele passa. Há momentos quase de riso negro."
Ao início, os espectadores poderão ter alguma dificuldade em compreender o que se passa. É assim mesmo. As incongruências irão sendo esclarecidas. Quantas filhas ele tem? Será que a família não quer ou não consegue cuidar dele? Alguém está mesmo a roubá-lo? "O espetador fica um bocadinho inquieto, sem saber bem o que é que se passa", prevê João Lourenço. "Quando se começa a perder a memória começam a perder-se grandes bocados da vida. Há uma frase em que ele diz que é como se estivessem a cair as folhas, as folhas todas. É uma frase muito bonita."
João Perry acredita que esta é uma peça que irá tocar as pessoas. E talvez até mudá-las: "É um tema que nos diz algo a todos nós. É uma peça informativa, formativa, e que nos diz que estas pessoas precisam ser tratadas, com atenção, paciência e amor, não serem rejeitadas. Porque a tendência inicial é nós fugirmos destas pessoas, queremos ficar longe e não queremos assistir a essa dissolução da pessoa, da imagem que tínhamos dela." E isso é exatamente o que não é possível fazer neste espetáculo.