O punhal que veio dos céus é hipersónico e "invisível"
E ao 24.º dia, o "punhal" russo entrou na guerra. "Invencível", diz Putin. Um novo patamar e um alerta claro de que com esta arma hipersónica (o míssil Kinjal), e outras semelhantes, a Rússia pode aumentar a escalada de violência e até - e é esta a mensagem mais significativa que James Bosbiotinis , especialista em defesa e política internacional, sublinhou em declarações à BBC - avisar que consegue atingir outros alvos onde quer que estejam na Europa.
Dominika Kunertova do Centro de Estudos de Segurança de Zurique, também ouvida pela BBC, não valoriza, em demasia, o uso destas novas armas de guerra considerando antes que são sinais de "exibicionismo".
"Mesmo que as usem, devemos considerar estes atos como momentos isolados porque a Rússia não tem muitos mísseis destes. É até questionável que sejam tão precisos como dizem", afirma.
James Acton, especialista em política nuclear no Carnegie Endowment, apesar de considerar "impressionante" a informação russa sobre esta arma ( atingir alvos a 2 mil quilómetros de distância e ter uma velocidade de voo superior a 6 mil km/h) não a considera " tão significativa" nem percebe a "vantagem" que pode ser obtida com o seu uso. A dúvida está numa pergunta aparentemente sem resposta (ainda): estes mísseis têm maior poder de destruição do que os convencionais?
Certezas? Quase nenhumas. A Rússia afirma ter usado este novo míssil e destruído um depósito de armas subterrâneo ( foi divulgado um vídeo no Twitter), a Ucrânia nada disse nem tão pouco a localização do ataque.
No terreno, as últimas horas foram essencialmente marcadas pelo bombardeamento contra um quartel na cidade de Mykolaiv e pelo contínuo cerco e destruição de Mariupol.
As instalações militares ficaram totalmente destruídas e as autoridades ucranianas ainda não divulgaram qualquer informação sobre o número de vítimas, mas socorristas no local admitiram à AFP que poderão ser várias dezenas.
Cerca de 200 soldados estariam no quartel no momento do ataque com seis mísseis, mas nenhuma autoridade militar precisou o número exato.
O presidente da câmara de Mykolayiv disse que a cidade tem sido bombardeada a partir da vizinha Kherson, controlada pelas forças russas, mas "está a acontecer demasiado depressa para que possamos detetar e acionar o sistema de alarme".
A região tem sido o cenário de violentos combates e bombardeamentos por ser o último obstáculo para as forças russas antes da grande cidade portuária de Odessa.
Um novo ataque destruiu quase por completo a fábrica da Azovstal, uma das maiores empresas de laminação de aço da Europa.
"De acordo com as nossas informações, perdemos esse gigante económico. Uma das maiores unidades metalúrgicas da Europa foi destruída", disse o ministro do Interior, Vadym Denysenko, citado pela agência espanhola EFE.
Para Vadym Denysenko, "é inconcebível que Putin tenha dado, pessoalmente, ordem para destruir toda a cidade" de Mariupol.
Segundo o ministro ucraniano do Interior, "o objetivo de Putin não é desmilitarizar a Ucrânia, mas desindustrializá-la".
"Teremos de reconstruir as nossas fábricas nas próximas décadas", lamentou.
O porta-voz do ministério da Defesa russo, por seu lado, garantiu que "as unidades da [autoproclamada] República Popular de Donetsk, com o apoio das Forças Armadas da Rússia" estão a fechar "o cerco aos combatentes nacionalistas no centro da cidade".
A ONU alerta que as reservas de água e alimentos estão a esgotar-se e praticamente nenhuma ajuda humanitária foi autorizada a entrar na área ao contrário de outras cidades parcialmente cercadas, como Kharkiv, Kiev, Odessa ou Sumy, que ainda recebem ajuda.
A guerra já terá provocado pelo menos 847 mortos e 1399 feridos entre a população civil, incluindo mais de 140 crianças, até ao final do dia de sexta-feira. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos contabiliza 64 crianças mortas e 78 feridas.
A ONU acredita que os números reais de baixas civis, incluindo crianças, "são consideravelmente mais elevados, especialmente em território controlado pelo governo" ucraniano, mais sujeito à ofensiva russa.
"A maioria das baixas civis registadas foi causada pela utilização de armas explosivas com uma vasta área de impacto, incluindo bombardeamentos de artilharia pesada, ataques aéreos e de mísseis", lê-se no relatório.
Os números divulgados ainda não incluem as cidades de Mariupol e Volnovakha (na região de Donetsk), Izium (Kharkiv), Sievierodonetsk e Rubizhne (Lugansk), e Trostianets (Sumy), "onde há alegações de centenas de baixas civis" porque o processo de verificação é demorado e pode demorar vários dias.
As Nações Unidas calculam que o conflito já causou cerca de 6,5 milhões de deslocados internos, que 3,3 milhões de ucranianos fugiram do país e que cerca de 13 milhões de pessoas necessitem de assistência humanitária na Ucrânia.
As palavras de Volodymyr Zelensky - um vídeo publicado no Facebook e filmado à noite, numa rua deserta - coincidem com o ataque do hipersónico míssil Kinjal e ainda não mereceram resposta das autoridades russas.
"Chegou a altura de nos reunirmos. É tempo de dialogar. É tempo de restaurar a integridade territorial e a justiça para a Ucrânia (...) Negociações sobre paz e segurança para a Ucrânia são a única hipótese para a Rússia de minimizar os danos causados pelos próprios erros", afirmou o presidente ucraniano.
O aviso surge nesta frase: "De outro modo, as perdas para a Rússia vão ser tais que serão precisas várias gerações para que recupere".
Sobre a cercada Mariupol, onde um teatro, refúgio de mais de mil pessoas, foi bombardeado na quarta-feira pelas forças russas, Zelensky afirmou que mais de 130 sobreviventes foram resgatados dos escombros.
Novas imagens de satélite mostraram, ontem, mais danos em Mariupol sobretudo no oeste da cidade, onde é possível ver complexos de apartamentos queimados e numerosos escombros.
Zelensky disse ainda que os corredores humanitários já permitiram que mais de 180 mil ucranianos se afastassem dos combates, entre os quais mais de nove mil habitantes de Mariupol.
"Mas os ocupantes continuam a bloquear a ajuda humanitária, sobretudo em torno de zonas sensíveis. É uma tática muito conhecida (...) é um crime de guerra", acusou Zelensky. A Rússia "vai responder por isso. A 100%", avisou.
Boris Johnson, ontem, classificou a invasão como "o início de uma nova era de intimidação na Europa Oriental" e considerou que o mundo está num "momento de viragem", em que é preciso "escolher entre a liberdade e a opressão".
"Na Rússia de Putin, é-se preso durante 15 anos apenas por chamar uma invasão de invasão. E, se protestar contra numa eleição, é-se envenenado ou baleado", acrescentou.
Johnson acredita que "a guerra de Putin está destinada a causar prejuízos económicos ao Ocidente em próprio benefício (...) ele sabe que a cada aumento de dólar no preço do barril de petróleo lucra milhares de milhões com a venda de petróleo e gás".
O primeiro-ministro britânico avisa que se Putin, for vitorioso, não irá parar apenas naquele país.
Mateus Morawiecki, primeiro- ministro polaco, quer subir a parada das sanções e pediu à UE para impor o fim de todas as trocas comerciais com a Rússia. Morawiecki quer "um bloqueio comercial" por mar e terra "o mais breve possível", disse à Reuters.
E ontem, o dinheiro foi usado como argumento para pressionar a China.
Mykhailo Podoliak, conselheiro do presidência ucraniana e um dos participantes das negociações, escreveu no Twitter que o "Ocidente deve explicar a Pequim como 1,6 biliões de dólares [comércio entre a China e os Estados Unidos e a União Europeia] difere de 150 bilhões de dólares [comércio entre a Rússia e a China]".
"A China pode ser uma parte importante do sistema de segurança global se tomar a decisão certa de apoiar a aliança dos países civilizados e condenar a barbárie russa", sublinhou.
artur.cassiano@dn.pt