O pragmatismo e as suas vítimas

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Nas distraídas horas da noite de São Silvestre, a Comissão Europeia (CE) anunciou a sua proposta de "ato delegado complementar" (um instrumento legislativo da CE autorizado pelo Conselho e pelo Parlamento) que irá considerar como compatíveis com o combate às alterações climáticas algumas controversas fontes energéticas, a saber, o gás natural e a energia nuclear. Thierry Breton, o comissário europeu para o Mercado Interno, classificou esse documento como "pragmático". Na verdade, o adjetivo mais adequado seria "abominável", pois manifesta a incoerência entre a propaganda verde e a realidade cinzenta que percorre a política europeia. Lamentavelmente, o nosso país continua a ser muito pobre quando se trata de ajuizar criticamente as decisões tomadas em Bruxelas.

Analisemos a substância e a causalidade desta proposta. Afirmar que o gás natural contribui para a descarbonização da economia é uma enormidade grosseira. O facto de o gás ser o combustível fóssil com menor emissão de dióxido de carbono por unidade de energia produzida não lhe muda a sua natureza, da mesma forma que a baixa letalidade de um sabre não lhe retira a categoria de arma mortífera. O nuclear, por sua vez, revela bem como a malícia do processo político joga com o esquecimento e a ignorância. A energia nuclear é um fiasco tecnológico, um desastre financeiro e um escândalo ético pela perigosa contaminação que deixa para um futuro que se contará por milénios. Para a CE parece que as tragédias de Chernobyl (1986) e de Fukushima (2011) não foram suficientes para provar o intrínseco carácter danoso de uma indústria que, além do mais, continua a produzir resíduos sem tratamento final, úteis apenas para alimentar a corrida aos armamentos atómicos.

Para percebermos as causas motoras desta manobra, importa recordar que na UE a política energética é, no essencial, ainda uma competência primordial dos Estados. A União não pode impedir os Estados de usarem o nuclear e o gás no seu mix energético. O que está em causa aqui, é a captura da CE pelos interesses instalados, onde se misturam Estados, indústrias e setor financeiro. A atribuição de um "rótulo verde" vai desviar financiamento privado e público para o nuclear e o gás, em detrimento das energias autenticamente verdes, como é o caso da eólica, solar, geotérmica e das ondas. A CE está a promover concorrência desleal e jogo sujo. É claro que a proposta ainda terá de passar por um duplo crivo. No Conselho de Ministros necessitará de evitar "uma reforçada maioria qualificada invertida", o que significaria a oposição de pelo menos 72% dos Estados membros (pelo menos 20 países), representando no mínimo 65% da população da UE. No Parlamento, a proposta para ser batida teria de enfrentar a oposição de uma maioria de pelo menos 353 deputados. É precisamente para evitar a formação de uma oposição tão vasta, que a proposta junta energias tão bizarras. O "pragmatismo" procura satisfazer os diferentes interesses em jogo. O francês, através do nuclear, de que a França é a campeã desde que De Gaulle decidiu construir a sua force de frappe atómica. O alemão (e de outros países), interessado em prosseguir os seus negócios de importação de gás natural, nomeadamente, com a Rússia. De fora, e mais longínquo, fica o direito dos jovens europeus a um futuro habitável. Por enquanto, eles ainda recorrem aos tribunais e às greves pacíficas. Oxalá não cedam também à tentação do pragmatismo.

Professor universitário

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