Ernesto mostrou a convocatória à funcionária: "a senhora diretora chamou-me para uma reunião", informou. "Ah, estava convencida que não aparecia...", respondeu-lhe ela, expressão vaga, a desviar o olhar para a criança encostada ao braço direito do pai..Atravessaram o pátio da escola. Era a hora dos pais irem buscar os miúdos. Cândida viu Júlia, a melhor amiga e, excitada, gritou-lhe: "Júlia, ó Júlia! Hoje foi o meu pai que veio!" Mas a mãe de Júlia puxou-a pela mão, apressada em direção ao portão de saída, ao mesmo tempo que soltava para o ar : "Não fales com esse homem... Que nojo!".Ernesto viu-as afastarem-se, confundido, mas desviou o pensamento ao chegar à porta do gabinete da diretora. Pediram-lhe para deixar Júlia lá fora: "a dona Rosa toma conta dela" comandou Vitória..Sozinho com a diretora ouviu um longo discurso sobre a obrigação que a escola tinha de proteger as crianças, do dever de ouvir as preocupações dos pais, a responsabilidade social dos educadores....Ernesto apressou-a: "doutora Vitória, mas em concreto, diga-me, em que posso ajudar ? Há algum problema com a minha filha?...".Vitória suspirou e encheu-se de coragem: "O senhor Ernesto já teve problemas com a lei?" "Não", respondeu ele, desconfiado. Ela, a fixar os olhos nos dele, atirou: "desculpe mas tenho de perguntar se não foi condenado por pedofilia? Não está na lista da PSP?"....Ernesto recordou a cara da mãe de Júlia a soltar o "que nojo!"; a auxiliar a sibilar "estava convencida que não aparecia..."; a reunião de condóminos da véspera e a agressividade incompreensível dos vizinhos; a explicação para, de há uns dias para cá, vários deles virarem-lhe a cara quando se cruzavam; o silêncio repentino e os olhares fixos no café do bairro... "Isso é totalmente mentira!", alegou, enquanto sentia o rosto ruborizar. "Quem lhe disse isso?" .Houve uma carta anónima, alguns pais falaram disso, era boato generalizado no bairro... Ernesto ouvia a professora e pensava: teria sido a ex-mulher deprimida pelo divórcio? O Silva por ter perdido para ele a promoção? A madrasta por causa da herança do pai?...."Acha que a polícia lhe dá uma declaração a dizer que não está na lista? É que, na verdade, não há nenhum pai que diga que foi ver a lista nem alguém que se ofereça para pedir a consulta." Vitória mostrou-lhe assim o futuro: iam ser anos a lidar com isto. Mesmo se tivesse ajuda das autoridades, dos tribunais, nunca conseguiria ser visto como um verdadeiro inocente..A vida naquela comunidade tinha acabado para ele. Teria de mudar de terra, de emprego. Teria (e vieram-lhe lágrimas aos olhos) de sair daquela sala e explicar o inexplicável à filha de 8 anos, a pequena e feliz Cândida...