Num famoso ensaio sobre Tolstoi, Isaiah Berlin propôs, baseado num verso do poeta Arquíloco (A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe apenas uma coisa grande), a distinção entre os que concentram a sua obra num grande propósito e num núcleo condutor essencial (Dante) e os que perseguem na sua criação vários fins, desligados e muitas vezes contraditórios entre si, sem se ordenarem por uma visão essencial (Shakespeare)..Se procurarmos refletir sobre nós próprios a partir desta distinção, o peso esmagador de Dante e Shakespeare pode assustar-nos, pelo que prefiro ater-me aqui a dois outros exemplos, aliás também citados por Berlin, o ouriço Pascal e a raposa Montaigne. Entre nós, poderíamos citar os ouriços Antero e Pascoaes e as raposas Fernando Pessoa e Eduardo Lourenço..A ideia de que eu próprio me situo entre as raposas e não entre os ouriços, ideia que me levou a começar a escrever este artigo, surge, ainda assim, enquadrada por figuras tão grandes que prefiro designar-me então como um mero "diletante", alguém que durante a sua vida foi uma raposa preguiçosa para acabar por compreender, no fim do seu percurso, que nunca chegou a atingir a "grande coisa" que inspirou o ouriço..Uma das mais pungentes novelas de Henry James, The Middle Years, exprime toda a angústia do autor que chega ao fim da sua vida sem ter realizado o livro que sonhara, tal como o Bergotte de Proust entende, quando se deixa morrer diante do quadro de Vermeer, que era outra a obra que devia ter escrito. Mas esses personagens são autores que dedicaram a sua vida ao trabalho literário, ouriços da sua própria obra. Uma raposa preguiçosa, como eu me qualifico, sente no balanço da sua vida um desgosto necessariamente distinto..O meu amigo Mário Cláudio considera, provocadoramente, que a diferença entre romancistas e poetas é que os primeiros são trabalhadores e os segundos preguiçosos. Ele sabe bem, excelente poeta que também é, que isto não é verdade, mas eu próprio, quando cometi a audácia de um romance (Correspondência Secreta, de que já ninguém se lembra a não ser o Fernando Venâncio), vi bem a diferença entre os dois trabalhos e as duas atitudes. Na poesia respondo ao mundo construindo com palavras alguma coisa que só em cada leitor atingirá o seu destino. A poesia vive de uma atenção flutuante e de uma constelação de pequenas obsessões. É a raposa que salta ante cada estímulo e persegue à sua volta muitos ouriços..Quem se interessa por muitas coisas acaba por se não concentrar em nenhuma. Sei perfeitamente que os meus colegas diplomatas me consideram um poeta e os meus colegas poetas me consideram um diplomata. Todas as corporações desconfiam de alguém que se não dedique com fidelidade exclusiva ao seu ofício e as diletantes raposas são sempre encaradas com a dúvida que merecem. Preguiçosos porque se interessam por muitas coisas ao mesmo tempo e não se fixam em nenhuma, acabam por nunca chegar às "grandes coisas" que inspiram os ouriços. Mas - atrevo-me a dizê-lo - são mais felizes. Eu, por mim, invejo mais a dispersa e cintilante inteligência das coisas de Montaigne do que o génio concentrado e profundo de Kant. Admiro-os igualmente: mas nunca consegui concentrar-me num eixo fundamental e subordinar a ele a minha vida. Saltando entre livros e ideias, entre países e experiências, descobrindo coisas sem as aprofundar, escrevendo uns poemas na areia mais efémera, fiz da minha vida não apenas aquilo que pude e de que fui capaz, mas mais profundamente aquilo que quis. Se nunca encontrei em mim a "grande coisa" de que falava Arquíloco, se como poeta sou um bom diplomata e como diplomata um bom poeta, a verdade é que estou, tão plenamente como sem razão, conciliado com tudo aquilo que fiz, ainda que a nada tenha chegado. Alegria de poetas e de tolos, direis vós? Direis bem.. Diplomata e Escritor