"O nosso TC é completamente fora da caixa ao admitir a hipótese de se gerar um filho para outrem"
Professor na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, diretor do Centro de Direito Biomédico, membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, André Dias Pereira é autor de uma declaração de voto sobre a maternidade de substituição onde faz referência à jurisdição do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, segundo a qual quando um estado reconhece a mãe beneficiária como mãe, não pode outro país dizer o contrário.
O facto de a lei sobre gestação de substituição não estar em vigor - já foi duas vezes chumbada pelo Tribunal Constitucional (TC) - leva os portugueses recorrerem às agências para ter os seus bebés no estrangeiro?
Sim, no seu desejo de concretizar um projeto parental. Se cometem um crime? Não, os casais não. As agências de angariadores sim, cometem um crime ao angariar clientes para maternidade de substituição onerosa. Se estiverem a operar em Portugal estão a cometer um crime e obviamente o Ministério Público estará atento. Mas os angariadores estão na net, podem não estar em Portugal. Cometem crime? Não, não cometem! Estão ao abrigo da lei? Não, estão a violar os princípios da lei portuguesa, que é muito clara contra a maternidade de substituição onerosa, contra o pagamento desse serviço. A Carta Europeia dos Direitos Fundamentais prevê a proibição do lucro com base no corpo. É como comprar um rim.
O facto é que a lei não impede os pais de irem ao estrangeiro.
Comecei por dizer isso, que os casais não estão a cometer um crime. Toda a atividade em si não é um crime se for feito no estrangeiro, se fosse em Portugal era um crime por parte dos angariadores e de quem participa nesses processos. Segundo problema: foi feito num país onde isto é possível e a criança está lá e quer-se trazer para Portugal... As autoridades portuguesas não têm tido grandes preocupações com isso, não têm dificultado, mas, por exemplo, em França e Itália é um enorme problema. As autoridades destes países têm-se recusado a aceitar que a mãe beneficiária seja inscrita no registo civil como mãe, obrigando os casais a um processo de adoção.
No seu parecer sobre fala do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem...
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tem jurisprudência, completamente consolidada em 2019, e que diz que a criança goza de um direito fundamental que é o direito a ser registada e que se um estado, como a Ucrânia ou a Rússia, reconhece que aquela criança é filha da mãe beneficiária, seja francesa ou italiana, não podem esses países a impedir o registo. O que acontecia é que os casais chegavam ao consulado em Moscovo ou em Kiev e os serviços não davam passaporte à criança, ficavam retidos.
Também acontecia com portugueses?
Os serviços consulares portugueses não levantavam - nem levantam - essas dificuldades. O Ministério dos Negócios Estrangeiros tinha indicações para isso. O problema que temos estes meses é um problema apenas prático, não há viagens de avião por causa da pandemia.
É um problema que se está a viver em vários países, com bebés a terem de ficar com as mulheres que os geraram e com todos os riscos que daí podem advir...
É uma tragédia completa do ponto de vista psicológico, sociológico, enfim é uma realidade muito triste. É exatamente por isso que a maior parte dos países da Europa ocidental que têm uma certa compreensão pela dignidade da mulher, são completamente contrários a isto. Em Espanha ou França é absolutamente tabu. Em Portugal criou-se um clima muito especial em que quer o Conselho Nacional de Ética, quer o Conselho Nacional de PMA e o Parlamento foram criando grande abertura. Portugal é diferente, a sociedade portuguesa tem uma grande simpatia pela gestação de substituição e espero que avance o projeto do Bloco de Esquerda (BE) que está equilibrado.
Está a falar da questão de se estabelecer um período de arrependimento para a gestante, como preconiza o TC?
Entende-se que a mulher tem de ter o direito de se arrepender, de revogar o consentimento após o nascimento. A falta desse direito viola o seu direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade, à constituição de família numa perspetiva da dignidade humana. É a decisão do TC - e o TC não dá opiniões, decide, a maioria pode discordar mas não há nada a fazer, enquanto lá estiverem aqueles juízes... Não passou a lei em 2019 porque era uma lei completamente contrária ao TC. Em novembro de 2019, o BE apresentou novo projeto em que diz que a mãe tem até 20 dias, até ao momento do registo da criança, para se arrepender.
E o que é que acha disso?
Está-se a cumprir a decisão do TC. Acho bem porque, por um lado, não será inconstitucional e permitirá abrir a possibilidade de em Portugal haver alguma gestação de substituição - e isso é positivo porque há casais, mulheres, que tem esse projeto parental. Pergunta-me se vai ser funcional? Não, é evidente que não. Este modelo, que é o modelo inglês, não tem o sucesso da Ucrânia ou da Califórnia, em que se faz um contrato. Vai haver um ou dois casos por ano, porque é preciso ter uma grande amiga, uma mãe, uma prima que fará o favor de gerar a criança e não se arrepender após o nascimento.
O período de arrependimento vai inibir o recurso à gestação de substituição?
Claro, mas é a única que se pode fazer se levamos a sério os direitos da dignidade da mulher, naquilo que é o quadro jurídico português. Há mil e uma tese de mestrado que querem um sistema californiano. Podem querer tudo, mas não passa. Ponto. Há juízes do TC que também queriam, há um juiz curiosamente indicado pela direita, o sr doutor Gonçalo Almeida Ribeiro, que defende que devia ser um contrato de prestação de serviço.
E qual é a sua opinião?
Enquanto jurista e eticista conformo a minha opinião àquilo que é a evolução da sociedade portuguesa nas suas instituições. A minha opinião é evidentemente conforme à maioria do TC e que o BE deve fazer aprovar a lei para termos lei de gestação de substituição nos termos em que o TC aceita. Também é preciso ver que o TC foi muito corajoso num certo sentido: é o primeiro tribunal superior dos países da Europa Ocidental que admite qualquer forma de gestação de substituição. Nenhum tribunal em Itália, França, Espanha, Alemanha admite qualquer hipótese de uma mulher estar a gerar para outra. Neste contexto, o nosso TC é completamente fora da caixa ao admitir a hipótese de se gerar um filho para outrem. O BE Introduziu na lei os 20 dias de arrependimento, mas há pessoas que acham pouco, que devia ser seis meses, para dar tempo a quem a criança seja amamentada. Acho que ainda é pior. O que o TC exige é que a mulher tenha um tempinho depois do parto para pensar duas vezes se realmente entrega a criança ou não.
Em seis meses reforçam-se laços da mãe com o bebé...
Ainda podemos pensar em seis semanas, porque na adoção é esse o prazo para quem quer dar os filhos para adoção. Alguns também fazem esse paralelo. Mas verdadeiramente não acho que devia ser como a adoção porque para já esta criança nem sequer é filha genética desta mulher. Quando isto voltar à praça pública alguns vão criticar e dizer que 20 dias é muito pouco. Seis meses é muito tempo para o casal beneficiário estar à espera, quer para a mulher que teve a amamentar, esteve a afeiçoar-se a tratar a criança como filho e depois entregá-lo. Vinte dias como propôs o BE é um bom período porque é também o tempo em que se tem de definir a paternidade e, se não houver arrependimento, já vai para o registo civil tudo direitinho, já vai o pai e a mãe beneficiária, ou seja, nunca aparece nome da gestante. Fica obviamente nos registos do hospital, mas não no registo civil.
Com seis meses o nome da gestante apareceria sempre?
Seria como a adoção. Ficava o registo dela, depois fazia-se um registo que ficava escondido para as pessoas em geral, mas ficava lá. Estou otimista, espero que se aprove esta projeto do BE. Ficamos com uma maternidade com gestação de substituição pequenina, claro. Vai ser para poucos casos.
Passaram quatro anos desde que a lei foi aprovada e não se avança...
O Parlamento insistiu muito na ideia de não haver direito ao arrependimento, do contrato ser vinculativo, e o TC manteve-se firme a dizer que não pode ser assim. Houve um conflito institucional. É uma lei difícil, que só demonstra que esta matéria é mesmo muito difícil. Há quem considere que não é possível, como os eticistas mais conservadores, há outros, como eu, que consideram que é possível para casos muito bem delimitados, como diz o Tribunal Constitucional, com respeito pela dignidade da mulher. A algumas pessoas faz muita confusão a mulher gestante ser uma pessoa muito próxima. Vivemos muito fechados no conceito de família da era industrial, esta ideia de que a família é o pai e a mãe e os filhinhos todos fechados numa casa é uma coisa que apareceu dos séculos XVIII XIX, que se fortaleceu no sec. XX, mas não era assim na história da humanidade e não tem que ser assim.
O que é que quer dizer?
Sempre houve muitas mulheres a educar as crianças...sempre houve avós, tias, sempre houve muitos quadros de referência. No direito islâmico, na sharia, a mãe de aleitamento tem uma posição jurídica. Está lá escrito não se podem casar com as crianças e as crianças que comungaram o peito não se podem casar entre si. Esta mulher não é uma serviçal que se manda passear, a sharia reconhece-lhe dignidade. No fundo o que o TC nos vem desafiar é a termos a visão mais moderna da vida, em que pode haver uma mãe que é mãe a sério, no registo civil, e depois outra mulher que foi tão generosa que gerou a criança, mas que não desaparece. Depois depende de cada um, também ninguém fala em direito a visitas, mas pelo menos o direito de a conhecer...
A questão do anonimato foi ultrapassada e já está contemplada na lei.
Exatamente. A criança tem uma história de vida, tem uma mãe que lhe deu os genes, mas há uma mulher que em nome da sua dignidade mantém o seu estatuto, foi a sua gestante e quem sabe até - não se fala em direito de visitas, embora a sharia fale nisso para a mãe de aleitamento e, mesmo que seja um menino, depois de adulto tem o direito de visitar aquela mulher e as suas filhas em casa dela, sem que elas estejam com véu. É como se fosse da família. Mas nós estamos muito fechados...
Há egoísmo familiar?
Exatamente, como se a criança fosse propriedade dos pais. A criança pode ter muitas referências.