Comecemos pelo princípio. Roberto Rossellini (1906-1977), gigante do neorrealismo italiano, foi casado três vezes: da primeira mulher, Marcella de Marchis, nasceu Renzo, da segunda, a atriz sueca Ingrid Bergman, nasceram as gémeas Isabella e Ingrid e Renato Roberto, e da terceira, a indiana Sonali Senroy DasGupta, nasceu Raffaella, e adotaram Gil (1956-2008). Renzo é o pai de Alessandro Rossellini, este nascido de um caso com uma dançarina afro-americana, Katherine Cohen, que chegou a Itália vinda de Paris. Alessandro foi criado pela avó Marcella, cresceu nas rodagens do avô Roberto, enveredou por uma carreira de fotógrafo e pelas drogas, e aos 57 anos decidiu fazer a sua primeira longa-metragem. The Rossellinis (coassinado por Lorenzo d"Amico de Carvalho) é um olhar bem-disposto sobre a "patologia" ligada a um apelido de peso. Um documentário que começa com imagens do funeral do pater familias Rossellini e acaba com uma sessão fotográfica para a Vogue. Duas situações distintas de reunião de família que formam o belo parêntesis de um conjunto de conversas íntimas à procura do que é isto de ser um Rossellini. Ao DN, o realizador, Alessandro, falou da importância deste exercício curativo de memória para se reencontrar..Antes de The Rossellinis, já tinha feito curtas-metragens em torno da obra do seu avô, uma delas sobre Ingrid Bergman [Viva Ingrid!]. O que é que lhe levou agora a interrogar o seu apelido? O que é que procurava ao fazer este filme? .Fiz pequenos documentários para a televisão, sim, que não são grande coisa. Mas o da Ingrid Bergman, desse estou muito orgulhoso! É uma montagem de 20 minutos de imagens de arquivo. Sobre The Rossellinis, originalmente, o que estava à procura era apenas de construir uma carreira a partir do zero, sou sincero. Essa foi a minha primeira motivação. Mas à medida que fui trabalhando no filme, vi a oportunidade de fazer algo dentro da minha própria história de vida... Eu fui um toxicodependente, durante muitos anos, e no processo de reabilitação, em que somos incentivados a não nos escondermos atrás das coisas dolorosas mas a analisá-las, o meu desafio pessoal foi sentir-me digno do meu apelido, da minha herança. Então, queria falar sobre isto, e também ver como é que os meus familiares - o meu pai e os meus tios - se sentiam em relação a essa herança. Todos eles têm diferentes histórias, mas todos representam qualquer coisa de Roberto Rossellini..Foi uma terapia familiar? .Absolutamente. Foi e é. Quando nos dirigimos aos nossos familiares e lhes fazemos as perguntas difíceis, as perguntas que geralmente não se fazem, o que sai é algo de muito íntimo e poderoso. Libertaram-se aqui alguns demónios, alguns não ditos que, momentaneamente, e ao longo do documentário, criaram mal-estar nas nossas relações. Mas o resultado foi muito importante. Acima de tudo, aprendi que sou amado, e isso faz-me sentir mais seguro enquanto ser humano. Depois, fazer um documentário não é fácil. Só o facto de ter conseguido ir do princípio ao fim fez-me sentir mais confortável comigo próprio..E quais foram as primeiras reações, quando convocou cada membro da família? É que esse mal-estar de que fala é percetível aqui e ali... .As primeiras reações foram: "Ótimo! Vamos a isso." Essencialmente porque estavam felizes por me ajudar - eu era a ovelha tresmalhada da família -, e havendo esta chance de me reinventar, envolveram-se logo. As disposições mudaram um pouco quando comecei a entrar nas suas casas com questões, por vezes, irritantes... Portanto, a certa altura já não estavam tão felizes. Mas, no final, consultei-os para editar o que fosse preciso, e penso que as mudanças necessárias melhoraram o filme, no sentido de o esculpir e de o tornar mais direto..O seu pai, Renzo Rossellini, parece um pouco tímido no assunto. Qual é o impacto nele da figura do pai, Roberto? .Penso que o meu avô teve e tem um enorme impacto no meu pai. Vejamos: o meu pai tem uma carreira incrível como produtor, teve, durante anos, uma grande expressão de ativismo político, fundou em Roma uma rádio nacional independente [Radio Città Futura], foi ao Afeganistão ajudar a estabelecer outra rádio [Radio Free Kabul] em plena invasão soviética, enfim, esteve envolvido em ações tão importantes... Mas, no cinema, o que o torna valioso é a memória do seu pai, o facto de ter colaborado com ele. Para o meu pai, o mais importante é ser filho de Roberto Rossellini..Em The Rossellinis há, por um lado, o desejo de desconstruir o mito Roberto Rossellini, e, por outro lado, um reconhecimento do seu magnetismo. Como é que, pessoalmente, o recorda? .A minha relação com o meu avô foi somente de afeto, amor e proteção. Ele morreu quando eu tinha 13 anos, mas até aí esteve sempre muito presente na minha vida, e é assim que o recordo. Depois, ao crescer, percebi que havia mais para além disso, percebi que ele era um realizador extraordinário - tornei-me fã do Rossellini realizador. Já no documentário quis distanciar-me um pouco para observar a vida de um homem que... não é culpado de nada, a não ser ter nascido em 1906. Na geração dele era preciso ser-se patriarca, o homem entre os homens. Era normal os realizadores terem amantes, mas o meu avô, pelo menos, era decente: quando estava com uma mulher, não andava com outras. Apenas não acreditava que o amor durasse para sempre; era um perseguidor de paixões. E isto aplicava-se tanto a mulheres como a projetos ou culturas diferentes... Em suma, era uma vítima dos seus instintos..A certa altura, no documentário, diz que se sente intimidado na presença da sua tia Isabella, que ela tem o carisma do pai... .A minha tia Isabella é extremamente carismática e muito direta. Eu cresci com isso, passei vários anos próximo dela, quando vivi nos Estados Unidos. Entre os meus 20 e 30 anos, ela foi a pessoa da família que cuidou de mim, e por isso aprendi a respeitá-la..Voltando a Roberto Rossellini: há fotografias em que o vemos a si, em criança, nas rodagens do seu avô. Era comum visitar o set? .Acho que desde que nasci, sempre que havia um filme do meu avô a ser rodado, eu estava lá. Eu e toda a família. Éramos vistos como a trupe circense de Rossellini... Assim que ganhei idade suficiente, comecei a conviver com os eletricistas, que me deixavam ajudar, davam-me tarefas, etc., e aquilo para mim tornou-se um jogo! Estava no meu recreio. Na verdade, pode dizer-se que fui criado no set do meu avô, porque a minha avó [Marcella de Marchis], com quem eu vivia, era a figurinista de muitos dos filmes dele. Tendo esse trabalho, ela acordava muito cedo para vestir centenas de figurantes, e eu acompanhava-a às 5h00 da manhã! Lembro-me bem que, quando ela chegava ao set, abria uma das arcas com as roupas e deitava-me lá para eu dormir mais duas ou três horas....Apesar do "peso" das questões familiares, o filme mantém a leveza e o sentido de humor. É um gene Rossellini? .É sem dúvida um gene Rossellini, mas é também uma maneira muito italiana de sobreviver às tragédias. É a chamada commedia all"italiana: precisamos de rir das nossas tragédias..dnot@dn.pt