O livro que eu mais queria escrever em 2017

Os desejos de novo ano de Miguel Sousa Tavares, Lídia Jorge, Manuel Alegre, Francisco José Viegas, Luísa Costa Gomes e outros escritores.
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O pânico da página em branco e que romance escrever atinge todos os autores. Se uns lidam melhor com as expectativas do que outros, há quem sonhe com um livro especial, único, que fique na história da Literatura. Também existe quem encontre um tema impossível mas aceite o desafio, quanto mais não seja executado pela mão de outro escritor. Vejamos quais são os projetos literários para o ano que começa de alguns dos principais nomes da literatura nacional...

Miguel Sousa Tavares:

"Eu (e julgo que todos os escritores, tal como eu) gostaria de escrever o livro da minha vida. E depois descansar em paz. Mas não sei se esse livro existe e se está à minha espera para que eu o escreva. Em tudo na vida, é preciso que as coisas façam sentido. Nunca consegui resolver na minha cabeça a equação de saber se são os livros que vão ter com os escritores ou se são estes que os procuram e encontram. Talvez seja uma fusão de ambas as coisas, talvez a montanha e o alpinista se encontrem mutuamente, como Sir Edmund Hillary respondeu quando lhe perguntaram porque tinha resolvido escalar o Everest: "Porque estava ali." Todos os livros que escrevi deram-me sempre a sensação de uma montanha por escalar e muitas vezes iniciei a escalada sem conseguir chegar ao topo. Mas, primeiro que tudo, é preciso que eu consiga ver a montanha, antes de sentir o desejo e a necessidade de a escalar. Por isso mesmo, sempre me fascinou ler sobre o processo criativo dos escritores e sobre a relação entre esse processo e as circunstâncias das suas vidas. Porque escrever envolve sempre, também, uma forma de disfunção, de distanciamento, de ausência, em relação à vida normal de pessoas normais - que, no fundo, todos queremos ser. É preciso que a minha vida normal desapareça ou se apague para que eu possa mergulhar noutra, inventada e contada como se estivesse a vivê-la. A escrita é um misto de coragem e de deserção. A satisfação do dever a ser cumprido ou o sentimento de culpa por não estar a escrever. Viver ou suspender a vida. Esquecer tudo ou jurar que regressamos e pedir que esperem por nós. Contar os dias e os anos, o número de palavras e o de páginas. Perder o fio à meada ou perder-se no fio da meada. Ser dono da nossa história ou ela ser dona de nós. Mas algures, de repente, quem sabe, sem ser chamado, sem sequer ser desejado, há um dia, um momento - que é sempre mágico - em que sabemos que o livro está ali, à nossa frente, e que não há como escapar-lhe. Não sei o que escreverei nem se escreverei. Não sei o quê, nem como, nem quando. Só sei que é preciso que faça sentido."

Francisco José Viegas:

"Um romance: coisa puramente literária, portanto. Interessam-me as personagens mais do que "o romance". Mais do que as personagens afirmativas, interessam-me as que ludibriam, fingem, dissimulam, que têm vícios privados e não querem torná-los públicos - sobretudo mulheres, muito mais interessantes e poderosas do que os homens, nós. Interessam-me também as nossas pequenas oligarquias, que dominam o país desde 1836 e se julgam proprietárias do país e do regime (e são); porém, ao contrário das personagens com vida e capacidade de dissimulação, os proprietários do regime são geralmente imbecis, ou nababos da banca, ou gente muito empertigada da "cultura", políticos que desceram das províncias, velhos sacanas que se perpetuaram como um vírus em todas as áreas do poder, filhos e netos que já foram filhos e netos de outros proprietários do regime (do salazarismo e da oposição ao salazarismo, do constitucionalismo e da República), além de uma nova casta de imbecis que gostam de restaurantes da moda, têm voz aflautada e usam palavras como "seminal", "deriva", "top" e "narrativa". Em matéria de investigações para o detetive Jaime Ramos, isto afastava-o definitivamente da reforma nos próximos anos."

Isabela Figueiredo:

"Os Fracassíadas: um romance amoral e autobiográfico sobre um povo que embora detivesse as qualidades naturais para vencer na vida, escolheria desistir dos empreendimentos após o seu início e desacreditar de os levar a cabo, centrando a sua excelência no fracasso. Os Fracassíadas desejariam mudar de vida, mas adiariam para o "há de ser quando Deus quiser", vivendo imersos em incoerência e temor, nada produzindo ou construindo, empobrecendo e caminhando de fracasso em fracasso, incapazes de sair do ciclo que perpetuaram pela educação dos filhos. Preocupar-se-iam em manter a aparência de sucesso, pelo que o seu quotidiano público seria uma performance do ser e do ter, incorporada nos costumes. Dominados pelo pessimismo e o conformismo, os Fracassíadas deixariam que a inveja pelo ganho alheio, a maledicência, a mesquinhez, a autocomplacência e a vitimização dominassem o seu espírito até atingir uma degradação aviltante mas normalizante, que encontraria na morte a sua obra-mestra."

João de Melo:

"Deixei-me fascinar pelo tema da loucura. Este ano, publicarei O Livro dos Loucos. Há os que reclamam a normalidade, e outros que inventam uma realidade só deles, em visões distorcidas e conversas arrastadas. Os que enlouquecem de repente parecem ser agressivos, e talvez criminosos. Na Rua Direita da minha infância andava um homem acima e abaixo, de navalha aberta, a lançar rezas e bênçãos sobre quem assomasse à janela, a vê-lo passar. Ele na sua cantilena, a benzer, a abençoar-nos com a lâmina da navalha, e eu cheio de medo: ele vinha matar-me. Conheci loucos no Júlio de Matos, quando andei de amores com uma doutora que estudava a génese da loucura. Quanto aos loucos da guerra, esses têm olhos vazios e corações desesperados. Os poetas são loucos gloriosos. Cinatti, que se confessa apaixonado por Nossa Senhora, chora por não ser correspondido. Eugénio detesta operários: não leem poesia, não veneram quem a escreve. Cesariny, doido por marinheiros, tinha ciúmes do mar. Este meu romance sobre a loucura contém histórias de mulheres que exercem tiranias sobre os homens: exigem-lhes vinte orgasmos por noite. Também no álcool há uma loucura feminina e outra masculina. A mulher bebe para vingar o vazio, a rotina e a humilhação. O homem bebe por um desejo de loucura: inventar a coragem, vestir uma pele diferente, dar a si mesmo um pouco de justiça. Um dia, no futebol, um jovem embriagado vomitou para os pés do meu filho. Não pediu desculpa. Limitou-se a dizer-lhe que não se assustasse: nada daquilo era para levar a sério. O vómito dele tinha sido a brincar!"

Luís Filipe Castro Mendes:

O livro que sonham todos os que se lançam na aventura improvável da escrita é o livro que jamais poderá ser escrito: aquele Livro supremo de Mallarmé, no qual ele desejaria realizar e sublimar toda a realidade, ou a prosa perfeita, entrevista por Flaubert, uma prosa que apenas se narraria a si própria. Mais modestamente, o livro que eu desejaria escrever (e que nunca serei capaz), seria qualquer coisa como um romance--ópera. Um romance em que a narrativa estivesse configurada por uma estrutura rigorosamente musical, em que cada situação e cada personagem tivesse o seu próprio motivo e o ritmo determinasse implacavelmente o enredo e as situações. Há dois romances que me fizeram, quando os li, sonhar estes sonhos: o magistral Doutor Fausto, de Thomas Mann, uma obra-prima, e o menos conseguido, mas bem tentado, Sinfonia Napoleão, de Anthony Burgess. Também admirei (e é daqueles livros que desejaria ter escrito) Golden Gate, de Vikram Seth, um romance composto integralmente por uma sucessão de sonetos. Tentei fazer "alguma coisa em forma de assim" numa ficção que publiquei em 1998 na editora Quetzal, chamada Correspondência Secreta de quem ninguém já se lembra e que foi em tempo guilhotinada pelos seus editores, pelo que é escusado procurá-la nos mercados... Era, é claro, o sonho que falhei!"

Luísa Costa Gomes:

"Gostaria de escrever o romance que gostaria de ler. E ele havia de ser: subtil, de um entretenimento íntimo, tão leve que quase nem se desse por ele, gracioso sem se armar em engraçado, amoroso, e bravo e destemido, correndo riscos de uma forma inteiramente infantil, que se debruçasse de janelas sem saber que pode cair, e uma daquelas obras de arte que parecendo não ser nada, se infiltram de tal maneira capciosamente no espírito, que ficam a trabalhar dentro de nós (não nos transformam, isso é propaganda) mas anos e anos depois ainda nos vêm à memória, sempre naturalmente deturpadas de tão bem integradas no que julgamos ser só nosso. Feliz ou infelizmente, o romance que agora escrevo, não se parece com este, nem de perto nem de longe."

Manuel Alegre:

"Gostaria de escrever um livro sobre o Tudo e o Nada. O Tudo, porque dele fazemos parte sem ao certo sabermos o que seja. O Nada, porque é só uma palavra de quem nunca viu ou descreveu a substância. Presumo que seja isso mesmo: nada. De qualquer modo gostava de navegar por dentro da palavra Tudo até chegar a uma espécie de equação suprema. E gostava de entrar na palavra Nada e viajar por essa espécie de zero absoluto até cair num buraco negro do outro lado do qual encontrasse, escrita do avesso, a suprema equação. Não sei se seria um livro impossível, porque a escrita é liberdade e imaginação. Mas também memória. Ora não tenho essa memória do Tudo e do Nada. Teria de inventá-la. E é talvez o que já estou a fazer, porque a escrita também é invenção. Não há livros impossíveis."

Maria Filomena Mónica:

"Gostaria de escrever uma obra sobre o o confessionário desde a Idade Média até aos dias de hoje. Para quem não saiba, o confessionário é uma caixa, diante da qual, ao contrário do que sucede com os homens, as mulheres têm de se ajoelhar diante de um tapume de madeira que, à altura dos olhos, ostenta um círculo de latão com furinhos, por detrás do qual se senta o padre. Foi assim que me confessei, quando, aos sete anos, fiz a primeira comunhão, como foi assim que, anos mais tarde, ouvi falar de "beijos com a língua do rapaz dentro da boca", o que, na altura, considerei um "nojo". Ainda não comecei a investigar, mas já sei algumas coisas sobre a história desta peça de arquitetura religiosa. O confessionário foi introduzido em 1576 no Duomo de Milão pelo arcebispo Carlos Borromeo. Com a passagem do tempo, a insistência nesta prática acelerou-se: em 1910, depois de ter baixado a idade a que uma criança se podia confessar, o papa Pio X aconselhava a que as pessoas o fizessem regularmente, sendo o ato obrigatório na semana que antecedia a Páscoa. O sexo tornou-se então mais fascinante."

Mário de Carvalho:

"Um romance onde o que está em cima equivalesse ao que está em baixo, confirmando o lema alquímico, onde os caminhos fossem emparedados por labirintos e os labirintos se enredassem em novos e infindos labirintos e um cerco tenaz fizesse reverter todos os passos sobre eles próprios. Um romance contado na primeira pessoa, em que não houvesse nomes, apenas ressaltassem vozes em múltiplas toadas e cadências. Em que a melancolia, a lamentação e a contemplação condoída fossem atravessadas pelas memórias de proezas e travessuras. Um romance que tratasse de assombros e espantos e narrasse uma peregrinação sonâmbula ao recôndito de todos os navios, obras vivas e obras mortas, e visitasse obsessivamente as cem portas de uma cidade cercada. Um romance com homens derrotados ou triunfantes, mulheres esperando ou rompendo em desafio. Um romance em que soasse uma música branda e dolente, vinda do fundo dos tempos. Um romance que reescrevesse O Livro Grande de Tebas... como John Menard reescreveu o D. Quixote."

Lídia Jorge:

"Gostaria que viesse ao meu encontro um livro sobre o remorso, esse sentimento humano primo-irmão da culpa, mas mais importante do que ela porque se faz apenas por humanidade e não por pecado. Não me importava que fosse, por exemplo, o desenvolvimento do primeiro conto de Noite dentro, Moçambique, do francês Laurent Gaudé. Essa breve narrativa tem por título Sangue Negreiro e resume-se assim - Certa noite, o capitão de um navio carregado de escravos, aporta a Saint-Malo. Ao chegarem ao porto, os escravos evadem-se, e todos são recapturados e mortos, violentamente. Todos menos um, que não se deixa apanhar e que vai cortando os dedos das próprias mãos e pregando-os nas portas, dedo atrás de dedo, e noite após noite, até deixar enlouquecidos os habitantes da cidade. Nunca li um texto tão belo sobre o remorso. Remorso e culpa foram palavras banidas do vocabulário durante os anos noventa. Agora, que o mundo ficou de pernas para o ar, é bom que a ficção encontre forma de juntar a beleza à exposição dos sentimentos profundos que constroem os nossos tempos. Pois este tempo injusto nasceu da nossa racionalidade. Gostava que a Literatura o dissesse com os meios maravilhosos de que dispõe para o dizer."

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