Pérez-Reverte sentiu uma atração por um dos heróis mais míticos da história de Espanha, El Cid, e decidiu ir contra o imaginário e refazer a figura à sua maneira. O mais estranho neste romance é saber-se que a narrativa que construiu deve em muito aos filmes de cowboys, conforme revela nesta entrevista, replicando os cenários do Oeste, a duplicidade dos valores morais e o atravessar das fronteiras dos antigos Estados Unidos, como se essa vivência pudesse ser também medieval e ibérica..El Cid, ou Sidi, nomes dados a Rodrigo Díaz de Vivar, surge neste romance após ter sido desterrado pelo rei, movendo-se pela península com o seu exército e oferecendo os seus serviços a cristãos e muçulmanos. Esta dualidade pode parecer impossível na atualidade, mas Pérez-Reverte fez questão de utilizar um facto histórico e transformá-la numa mensagem contemporânea: "É deliberado da minha parte, mas é verdade que ele lutou com cristãos e com muçulmanos e essa é uma questão importante para se esbater a vontade de só existir preto e branco na História." Vai mais longe: "A estupidez do mundo atual obriga-nos a fazer escolhas entre esse branco e negro e não se aceita que existam virtudes nos adversários. Eu queria mostrar o ambíguo e a imprecisão dos contornos, que foi bem real em Cid e desejei sublinhá-la. Afinal, pretendo mostrar aos idiotas que o mundo não se duvide entre bons e maus.".Este é um romance histórico que confirma o que já disse: "Os leitores estão a mudar mas as histórias continuam as mesmas". É preciso ir à caça do leitor?.Já não se pode contar uma história como se o fazia no século XIX ou em grande parte do século XX, daí que um escritor profissional como eu deve adaptar-se ao mundo em que vive e não ficar naquele que viveu. As fórmulas literárias anteriores já não têm cabimento, mesmo que para ser um bom romancista deva conhecê-las e ao mesmo tempo encontrar novas ferramentas narrativas..Pela sua experiência, o leitor ainda encontra prazer na leitura num tempo cada vez mais virtual?.O verdadeiro leitor desfruta sempre de um livro, seja com Os Lusíadas de Camões ou A Montanha Mágica de Thomas Mann. Há é a necessidade de o ajudar a encontrar o caminho para as narrativas tradicionais em função da competição desleal das séries de televisão, das redes sociais e de uma vida muito informatizada, que faz com que o homem moderno fique sem tempo para o livro. Ou seja, o escritor tem de renunciar a uma certa literatura tradicional e competir com fórmulas atuais..Quer dizer que se adaptou a estes tempos?.Aprendi muito com o cinema e a televisão, ou seja, qualquer grande tema narrativo necessita de ser escrito sem frases supérfluas - como fazia Walter Scott, por exemplo - porque é dessa forma que surge nos ecrãs. Agora o escritor é obrigado a ter uma economia narrativa se quer captar a atenção do leitor..Existe em Sidi essa influência da televisão e do cinema?.Sim. Não num sentido conceptual mas na forma da narrativa. Em Sidi propus-me aplicar a nível literário a fórmula que o realizador John Ford utilizava nos seus westerns e reproduzi essa visão do Oeste num cenário da Península Ibérica. Foi uma inspiração, porque não é possível usar uma fórmula cinematográfica na literatura, mas o cinema forneceu-me vários recursos que foram muito úteis neste romance. John Ford foi fundamental neste livro..Daqui a 500 anos, El Cid ainda justifica um romance?.Creio que sim, pois existem personagens que são eternos. Podem mudar as fórmulas narrativas e como se apresentam as suas histórias, mas são lendas tão fortes que o ser humano terá sempre curiosidade em as conhecer. Basta ver a atualidade de grandes personagens históricas como é Aquiles da Ilíada, Hamlet de Shakespeare ou D"Artagnan de Dumas..Entre os últimos livros que escreveu está a série Falcó. Como consegue saltar do século XX para o ano mil de El Cid?.Sou um escritor profissional e o meu trabalho é contar histórias. Para mim é fundamental uma disciplina profissional e escrever todos os dias; ao fim de trinta e cinco anos, tenho uma grande prática. Qualquer leitor dos meus romances sabe que existe um laço familiar entre todos os livros, seja nas histórias sobre um espadachim do século XVII, de um combatente do século XX ou de um caçador de tesouros de qualquer século. Há um conjunto de temas que possuem dramas narrativos e personagens que me interessam, portanto eu nunca salto do meu território mesmo que aparentemente cada livro seja diferente. Se o são quanto ao assunto, as questões a que respondo enquanto escritor estão sempre lá. Nunca salto do meu mundo, o que muda é a forma de o abordar..Sidi teve uma primeira edição de 145 mil exemplares. É a prova de que os seus leitores continuam seduzidos?.Neste momento, o número de leitores está cada vez mais reduzido, basta ver que há quinze anos os meus livros, como os de outros autores, começavam com edições de 250 mil exemplares. Essa é uma realidade impossível hoje, mesmo que se atinja esse número ao fim de um ano. Felizmente, ainda existe um núcleo importante de leitores para os livros em papel, mas cada vez será menor. Dentro de poucos anos, o livro em papel irá desaparecendo e os seus leitores serão substituídos por outro género de leitores e de narrativas. Se eu fosse um escritor jovem, em 2040 teria de escrever histórias para séries de televisão porque a literatura em papel acabará neste século. Como tenho 70 anos, isso não me preocupa e posso continuar até ao meu fim deste modo. Por enquanto há um forte núcleo de leitores que são felizes com o formato de papel e que continuará a ler assim por algum tempo, mas não vale a pena iludirmo-nos porque o livro em papel está condenado e morrerá no século XXI".Citaçãocitacao "O herói envelhece, cansa-se, tem filhos! O herói nem sempre é bom, até pode ser em dado momento um assassino ou um delinquente, portanto quando tudo está próximo como neste mundo atual é mais fácil que o herói perca ainda em vida essa sua condição.".Diga-se que 145 mil exemplares é um número impossível em Portugal....Não conheço bem o vosso mercado, mas em Espanha tem vindo sempre a diminuir. Temos a sorte de ter mais habitantes e, portanto, leitores, além de que existe um mercado complementar da língua espanhola no continente americano. É evidente que o livro em papel está em retrocesso, mas não se deve fazer um drama dessa situação, porque a vida é assim. Essa situação já aconteceu em França, em Itália, nos Estados Unidos, e resulta das mudanças do mundo. O que é preciso é que o escritor esteja consciente desta realidade, afinal ele agora sabe quem é o inimigo e o seu trabalho é encontrar fórmulas novas no que faz, tanto em papel como noutros formatos, de forma a atingir o maior número possível de leitores..A sua idade "protege-o" das grandes mudanças que por aí vêm?.Dou um exemplo: tenho dois milhões e 200 mil seguidores na Internet. Quando posto um texto escrito há muita repercussão, que pode ir das quatro a oito mil reações. Se ponho no Twitter uma fotografia ou um vídeo, o número de seguidores dispara para 25 mil ou 50 mil. Isso demonstra que o audiovisual tem cada vez mais força e é preciso aceitar essa realidade. Como já disse, com a minha idade não vou precisar de mudar muito porque tenho os meus leitores, mas os escritores mais novos terão de encontrar registos diferentes dentro dos próximos vinte anos..O mesmo se passa no jornalismo, a sua anterior profissão?.Sim, é um exemplo muito válido. Se os jornais se limitam à edição em papel, morrem. Têm de encontrar fórmulas que convençam os leitores. Os jovens já não leem jornais com se lia na minha geração, então há que perseguir o leitor. Essa é a tragédia, mas também o desafio, do jornalismo atual..Sidi tem valores morais difíceis de encontrar atualmente. Dificultou-lhe a estrutura do romance?.É verdade que hoje em dia os valores morais são sempre os politicamente corretos, mas El Cid matava, fazia prisioneiros, ou seja, não é um personagem que responda às exigências do século XXI. Posso dizer, portanto, que faço uma provocação às normas atuais pois quero que o leitor veja El Cid como alguém do século XI e o aceite dessa forma. Que se comporta um líder daquela época e quis mostrar como se formava um líder e como as pessoas o seguiam e respeitavam, e essa situação é universal e mantém-se parecida no nosso tempo. Aliás, há uma situação de que gostei muito e que foi para mim inesperada, a de o livro estar a ser recomendado em escolas de formação empresarial para mostrar mecanismos de liderança de empresas. Não esperava por isto, o que me diverte bastante..Alerta para a existência de muitos Cid na tradição espanhola e que este é o "seu". Só podia ser estas figura ou haveria outras construções possíveis?.Não me interessava o Cid mais conhecido em Espanha, mas o homem que era antes de ficar conhecido. Quis mostrar como se forma a lenda e um jovem guerreiro, desterrado do seu reino e sem património além da sua espada, se torna no que conhecemos. Quais os mecanismos que o fizeram daquela maneira: lealdade, solidariedade, coragem? O que me interessava era o Cid antes de ser herói e foi o que me esforcei para fazer, daí que considere que é o meu Cid, e sobre o qual nunca se escreveu. É um Cid que não deve nada a ninguém, livre de tudo o que já foi dito sobre ele..Coloca na boca dele a seguinte frase: "As lendas só sobrevivem vistas de longe". Hoje em dia, as lendas têm mais dificuldade em sobreviver devido ao escrutínio virtual e próximo constante?.É muito mais difícil, sim, porque a hipercomunicação em que vivemos faz-nos estar muito próximos de tudo. E quando se observa de perto, perde-se a distância e o caráter sacramental de antigamente desfaz-se. Considerei importante sublinhar que não se é herói o tempo inteiro mas apenas numa circunstância. O herói envelhece, cansa-se, tem filhos! O herói nem sempre é bom, até pode ser em dado momento um assassino ou um delinquente, portanto quando tudo está próximo como neste mundo atual é mais fácil que o herói perca ainda em vida essa sua condição. O herói é um ser humano com defeitos e virtudes, e se de manhã pode ser um herói à tarde pode ser um canalha. E digo isto porque convivi com pessoas assim durante mais de vinte anos enquanto repórter de guerra; morrer, triunfar, desaparecer, era a matéria humana que me rodeava. O que mais gosto neste romance é que a matéria humana que compõe este personagem é evidente e o leitor observa-a de perto, vendo os defeitos, os medos, as ambições, a coragem e as virtudes..dnot@dn.pt.Arturo Pérez-Reverte.Edições ASA.347 páginas.Recuperar a História com a narrativa.Entre as melhores novidades editoriais do 2021, está o mais recente trabalho do historiador António Borges Coelho. Prejudicado na sua visibilidade pelo fecho das livrarias no início do ano devido à pandemia, História e Oficiais da História é um livro a não ignorar, tal como já eram os seis volumes da História de Portugal vindos a publicar desde 2010, como fora o caso de Os Filipes, obra muito esclarecedora de outros tempos..Oficiais da História vem comprovar duas situações que o autor refere nas páginas iniciais: "não falta quem minimize o conhecimento histórico" e "a História interessa um número crescente de cidadãos". Ambas as opiniões são suportadas, no primeiro caso, pelo peso da ideologia do historiador; no segundo, pela proliferação de livros e revistas da especialidade com que os leitores se confrontam atualmente. O debate sobre o conhecimento prossegue noutros capítulos posteriores e atravessa todo o livro de forma constante..De que trata este trabalho? Principalmente, dos que têm contado o nosso passado afastado: os cronistas, a que se junta o papel de outros historiadores, como Herculano (coadjuvado por Toynbee) e Magalhães Godinho. Quanto aos primeiros, Borges Coelho percorre-os em duas centenas de páginas, voltando a revelar a sua importância. É o caso de Fernão Lopes, Rui de Pina e João de Barros. A originalidade de Fernão Lopes é uma das partes fortes, começando por explicar a linguagem do cronista, o seu método e fontes; em Rui de Pina, a surpresa perante a "fotografia" da morte de D. Duarte e a explicação do desastre de Tânger; em João de Barros, a mundividência. A ler..António Borges Coelho.Editorial Caminho.276 páginas