Já se passaram 13 anos, desde aquele encontro com Beyoncé, num luxuoso hotel de Londres, quando o seu pai, Matthew Knowles, serviu como mestre-de-cerimónias à imprensa mundial, durante a apresentação de I Am... Sasha Fierce, o álbum que, nesse cada vez mais distante ano de 2008, iniciaria a transformação de uma estrela pop como tantas outras num ícone cultural e identitário. Com um programa cronometrado ao segundo (no dia seguinte tinha de regressar aos Estados Unidos para outra ação de promoção), a manhã estava reservada para a audição do disco, apresentado, faixa a faixa, pelo pai e então agente da cantora, que chegou a vender a casa para investir na carreira da filha. "Ela adora isto, está a viver um sonho de criança", respondeu então, quando questionado sobre a apertada agenda da cantora..Apesar de já na altura ser uma das maiores estrelas pop mundiais, seria quase com um sorriso condescendente que recordaríamos este momento, não fosse dar-se o caso de o trabalho em questão, o terceiro de originais de Beyoncé, significar uma espécie de fronteira na carreira da cantora texana, que com ele marcou também um antes e um depois na própria indústria musical, permitindo às artistas, especialmente a elas, pegarem em definitivo nas rédeas das suas próprias carreiras, como tão bem ficou patente na cerimónia dos Grammys deste ano, realizada no Convention Center de Los Angeles, na qual as mulheres estiveram em destaque..Apesar de Beyoncé ser a principal favorita, devido ao maior número de nomeações, num total de nove, os quatro principais prémios foram entregues a Taylor Swift, Billie Eilish e H.E.R., nas categorias, respetivamente, de Álbum do Ano, Gravação do Ano e Canção do Ano, a que se juntam ainda os troféus conquistados por Meghan Thee Stallion (Revelação do Ano) e Fiona Apple (Melhor Álbum Alternativo). Seria, no entanto, Beyoncé a ficar na história, quando, à boleia de mais quatro Grammys (Melhor Vídeo Musical, Melhor Performance R&B, Melhor Performance e Melhor Canção Rap, neste caso com um tema, Savage, cointerpretado com Meghan Thee Stallion), acabaria por se tornar a mulher mais premiada na história dos Grammys. Ultrapassou assim a violinista e cantora de bluegrass Alison Krauss e empatando, no segundo lugar desta exclusiva tabela, com o mítico Quincy Jones, ambos com 28 troféus, e apenas atrás do já falecido maestro de origem húngara Georg Solti, com 32..Mas, prestes a completar 40 anos, a Queen Bey, alcunha que ganhou pouco tempo depois da edição de I Am... Sasha Fierce, ainda tem muito mais para conquistar - na música e fora dela. "Quero homenagear as maravilhosas rainhas e reis negros, que me inspiram e ao mundo. Acredito que o meu trabalho, e o de todos nós, passa por refletir o momento que estamos a viver. Tem sido um tempo difícil", disse quando subiu ao palco do Convention Center de Los Angeles, para receber um dos prémios, numa referência à pandemia, pelo modo como tem afetado o mundo da música e da cultura, mas também numa alfinetada à indústria, devido à sub-representação das minorias étnicas e das mulheres na mesma..Regressemos entretanto a 2008, ao Mandarin Oriental, um luxuoso hotel no centro de Londres, onde Beyoncé tinha a tarde reservada para receber os jornalistas, depois de ouvido o disco que tudo mudou. À porta da suíte da cantora, dois enormes guarda-costas comiam, descontraídos, enormes hambúrgueres, enquanto nos corredores um corrupio de assessores tentava organizar as entrevistas, com direito a apenas 15 minutos de conversa. As regras eram simples: "Nada de perguntas pessoais" - Beyoncé já se havia casado com o músico e produtor Jay-Z, um dos mais poderosos nomes da indústria musical americana, e a curiosidade em redor do casal, tal como hoje, era já imensa..Ouve-se um burburinho do lado de fora e, segundos depois, Beyoncé entra finalmente na sala. Após cumprimentar os jornalistas com um caloroso aperto de mão e um largo sorriso, a conversa começa. Quem é, afinal, Sasha Fierce? "Quando estou em palco, a atuar, sou uma pessoa completamente diferente da que está aqui hoje. Trata-se de um alter ego que tem vindo a ser construído ao longo dos anos e não tem medo de usar a sua sensualidade, enquanto eu sou muito mais conservadora. Nunca seria capaz de entrar numa sala como entro em palco.".Pouco tempo antes de gravar o álbum, Beyoncé tinha feito uma das suas recorrentes incursões pelo cinema, para interpretar o papel da cantora Etha James no filme Cadillac Records, o que acabou por influenciar o resultado final do disco. "Foi uma pessoa muito corajosa para o seu tempo, que fez sempre aquilo que queria e gostava, fosse de soul, rock ou blues." Tal como a própria acabaria por fazer a partir daí, quando decidiu tomar as rédeas do seu destino, após um período em que parecia estar a ser puxada em direções opostas - a da sua vontade e aquilo que todos os outros esperavam ou queriam dela. Incluindo o pai e agente, com quem haveria de cortar a relação profissional logo no álbum seguinte, 4, editado em 2011 e no qual assume de vez uma atitude do tipo "a partir daqui faço o que bem entendo", elevada ao expoente máximo nos álbuns seguintes: o homónimo Beyoncé (2013) e ainda mais no arrojado Lemonade (2016), um dos seus mais aclamados trabalhos, que apesar de praticamente ignorado pelos Grammys, tendo vencido apenas em duas categorias, mas falhando nas principais, se tornaria um marco da carreira de Beyoncé, pelo modo como aborda sem rodeios as questões raciais e de género..Para trás ficava definitivamente o tempo das Destiny's Child, a girl band da qual foi figura de proa, nos anos 90, e da estrela pop perfeita que então se seguiu. Entre um e outro momento, apenas um dado em comum se manteve: o sucesso e a capacidade de protagonizar alguns dos maiores êxitos da música popular das últimas décadas: do quase inocente No, No, No, das Destinys Child, ao panfletário Black Parade, o tema vencedor do último Grammy de Melhor Performance R&B, lançado de surpresa a 19 de junho do ano passado, no feriado que assinala a Proclamação de Emancipação dos Escravos no Texas, pouco tempo depois do assassínio de George Floyd às mãos de um agente da polícia de Minneapolis. Os lucros resultantes, cerca de 2,5 milhões de dólares, foram doados à fundação criada pela cantora, a BeyGOOD, revertendo na totalidade para pequenas empresas geridas por afro-americanos. E já antes, em abril, havia contribuído com outros seis milhões para organizações que estavam na linha da frente no combate ao coronavírus nos Estados Unidos.'.Com mais de cem milhões de álbuns vendidos e uma carreira que se estende muito para lá da música, a áreas como o cinema ou a moda, a marca Beyoncé é uma das mais lucrativas da indústria do entretenimento, como se comprova ao olhar para a lista das dez mulheres mais bem pagas na música durante o ano de 2019, na qual, segundo a revista Forbes, a Queen Bey se encontra em segundo lugar, com uma faturação de cerca de 80 milhões de dólares e apenas atrás da compatriota Taylor Swift. O que não a impede de estar na linha da frente da ação social, seja para ajudar a levar água potável às crianças que vivem em áreas remotas do Burundi, como fez em 2017, em parceria com a UNICEF, ou a clamar publicamente por justiça no caso de Breonna Taylor, uma mulher negra morta a tiro, pela polícia, em março do ano passado, enquanto dormia em casa. Numa carta aberta endereçada ao procurador-geral do Estado do Kentucky, Daniel Cameron, a cantora lembra que "os agentes envolvidos, Jonathan Mattingly, Myles Cosgrove e Brett Hankison, continuavam em funções e deviam prestar contas à Justiça"..No meio disto tudo, Beyoncé é ainda uma mãe babada de três crianças: Blue Ivy, de 9 anos, e os gémeos Sir e Rumi, de 4, que segundo revelou em entrevista à revista Vogue, tenta educar "fora dos habituais padrões e estereótipos de género", pretendendo apenas que sejam "autênticas, respeitosas, compassivas e empáticas". Talvez por isso, a mais recente coleção de moda desenhada pela artista, lançada em parceria com a Adidas, seja também ela "sem género"..No tal hotel londrino, quando Beyoncé era já uma das maiores estrelas mundiais, concluímos a rápida entrevista a contrarrelógio com uma pergunta básica, sobre as eventuais lembranças da primeira vez que subiu a um palco: "Tinha 9 anos e foi o meu professor de dança que me incentivou. Sempre fui muito tímida e foi uma surpresa enorme, para todos, a confiança que demonstrei. Pela primeira vez, senti-me segura para expressar todos os meus sentimentos." Um momento talvez novamente recordado nesta última cerimónia dos Grammy, quando, trinta anos depois dessa estreia, subiu ao palco acompanhada da filha Blue Ivy, para, também aos 9 anos, receber o seu primeiro Grammy, pela participação, ao lado da mãe, no vídeo de Brown Skin Girl..dnot@dn.pt