Em 2021 houve 424 pessoas condenadas por um crime que a maioria acha que deixou de existir em 2000: consumo de drogas. 197 dessas pessoas tinham entre 16 e 24 anos.Mais: no conjunto de todos os condenados em 2021 pelos chamados "crimes de droga", os que o foram exclusivamente por consumo são 30% do total..Desses 30%, a esmagadora maioria - 75% - foi condenada por consumo de canábis, uma substância cuja produção, distribuição, venda e consumo para efeito recreativo é legal em vários países e estados americanos desde 2011; uma substância que a ONU em 2020 "desclassificou" para um grau inferior de danosidade na tabela de substâncias proibidas (que integra os tratados internacionais assinados entre os anos 1960 e 1980 que fundaram aquilo a que se dá o nome de "proibicionismo"), retirando-a da lista das "drogas mais perigosas" como a heroína. Uma substância cujo uso medicinal (desde que com receita), venda e produção foram legalizados Portugal em 2018, e que um grupo de "notáveis" incluindo vários ex-ministros do PS e PSD - Alberto Costa, António Correia de Campos, João Soares, José Vera Jardim, José Vieira da Silva, Fernando Leal da Costa, Maria de Lurdes Rodrigues, Paula Teixeira da Cruz ou Laborinho Lúcio -, bem como especialistas em saúde como Francisco George, Henrique Barros ou Manuel Sobrinho Simões, defendeu em 2021 numa carta aberta dever igualmente ser alvo de legalização para consumo recreativo..Já em 2019 o DN tinha assinalado o facto de a descriminalização do consumo de drogas, a política pública portuguesa mais elogiada internacionalmente, tão apresentada como "exemplo" a seguir, ser na verdade um embuste. Porque, na prática, Portugal não só não descriminalizou o consumo das substâncias que é uso denominar como "drogas", como nos últimos anos tem vindo a condenar cada vez mais pessoas por deterem drogas para consumo: entre 2009 e 2017, como relatava então este jornal, o número de condenados por esse crime aumentou 128%..É aliás o próprio relatório de 2021 do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), do qual extraí os dados citados, a reconhecê-lo: "As condenações por consumo (...) registaram um acréscimo significativo nos últimos anos.".Em 2019, o então - e ainda agora - responsável pelo SICAD, o médico João Goulão, integrante da comissão que em 1999 recomendou ao governo Guterres que descriminalizasse o consumo (recomendação da qual resultou a lei em vigor), assumia perante o DN que a condenação de consumidores era "um entendimento enviesado da legislação", porque "o objetivo da lei era que não acontecesse que o consumo levasse à condenação". E dizia: "Se calhar é boa altura de repensarmos isto e aperfeiçoar a lei, retirando essa lacuna.".A lacuna em causa é o facto de a lei 30/2000 - a qual revogou a norma que na chamada "lei da droga" de 1993 criminalizava o consumo -, determinar que "o consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações (...) constituem contraordenação", acrescentando, porém, a seguir: "Para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias (...) não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.".Se a primeira frase descriminaliza o consumo, a segunda parece deixar em aberto o que deve suceder nos casos em que as substâncias apreendidas excedam a quantidade referida..Na sequência do debate jurídico sobre como devia ser a lei entendida, e havendo decisões contraditórias de tribunais superiores, o Ministério Público propôs ao Supremo que assentasse jurisprudência no sentido de que "a aquisição ou detenção de estupefacientes para consumo próprio de uma quantidade superior à necessária para consumo médio individual durante o período de 10 dias integra a contraordenação prevista (...) na Lei n.º 30/2000"..O Supremo, porém, fez o contrário. No acórdão 8/2008, reconhecendo embora que "não seria compatível com a Constituição a incriminação do consumo em função do dano produzido em si próprio, na medida em que tal finalidade é alheia à legitimidade do poder punitivo de um Estado de direito democrático (...)", considera que devem ser criminalizadas condutas que "fomentem ou possibilitem o consumo (alheio)", como será o caso do cultivo de drogas ilícitas ou a sua aquisição ou detenção em quantidades que manifestamente excedam as "necessidades próprias" quotidianas.".A ideia é que tendo alguém consigo uma quantidade de substância que excede a considerada como sendo a necessária ao consumo de 10 dias, pode "dispensá-la" a outra pessoa..Em dissenso, o juiz conselheiro Henriques Gaspar, que viria a presidir ao Supremo de 2013 a 2018, escreveu: "Não se encontra uma única razão que tivesse levado o legislador a querer continuar a punir como crime, em função de um critério puramente quantitativo da detenção de produto, uma conduta - o consumo - que decidiu descriminalizar (...). A posição que fez vencimento trabalha inteiramente sobre um modelo imaginado.".Outro dos juízes derrotados, Maia e Costa, vai mais longe na ridicularização: "A posição maioritária (...) chega a um resultado paradoxal: o da criação de um novo crime, denominado "aquisição e detenção de drogas ilícitas, para consumo próprio, de quantidades excessivas", que é afinal um crime de tráfico (...).".A estultícia desta interpretação do Supremo, ao criminalizar uma posse para consumo porque quiçá pode não ser para consumo, é agravada pelo facto de a determinação da "quantidade necessária para consumo médio individual durante o período de 10 dias" ser em si uma quimera, baseada na ideia de que quem compra as substâncias em causa as consome todos os dias e tem uma "dose" média de consumo..Como se não fosse muito comum os consumidores recreativos - ou seja, a maioria esmagadora - das substâncias em causa comprarem, por uma questão de conforto e de conveniência, quantidades que lhes permitam não ter de contactar com um mercado ilegal com demasiada frequência..Certo é que 15 anos depois tal interpretação continua a impor-se aos tribunais. Abstrusidade com o qual, finalmente, o PS, através do projeto de lei n.º 848/XV, que "altera o Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, esclarecendo a descriminalização da detenção de droga para consumo independentemente da quantidade", e vai esta terça-feira a discussão no parlamento, pretende acabar..Mas eis que, contra essa pretensão da bancada parlamentar do seu partido, se levanta o ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro. Invocando o bem "saúde pública", o ministro considera, em "parecer", que "o legislador efetuou o justo equilíbrio entre as necessidades de reação contra, por um lado, o consumo elevado de substâncias estupefacientes potenciador de comportamentos aditivos altamente lesivos desse bem jurídico, reconduzindo-o ao ilícito criminal, e, por outro, o consumo reduzido ou moderado dessas substâncias, ainda que gerador de toxicodependência, que faz incorrer os seus agentes na prática de um ilícito contraordenacional". Concluindo assim que "a magnitude dos desafios colocados às sociedades europeias em matéria de prevenção e combate ao tráfico e consumo de droga, que surgem umbilicalmente ligados, bem como de recuperação dos cidadãos consumidores de estupefacientes, aconselha a que se não rompa com as soluções que a ordem jurídica nacional oferece em matéria de reação penal e contraordenacional ao consumo de estupefacientes.".Trata-se tão simplesmente, na sua ideia de que se deve criminalizar o consumidor "problemático" para "o salvar"- e para, como o ministro candidamente explicou aos jornalistas, poder ser (des)tratado pela polícia como suspeito de crime para que esta tente chegar aos "traficantes"-, da total negação do objetivo da descriminalização do consumo consagrada há 23 anos. A qual, recorde-se, visava substituir a abordagem penal e policial por apoio social e terapêutico..Só por esta belíssima contradição com aquilo que é uma das mais aplaudidas reformas efetuadas pelo PS, o ministro já estaria de parabéns. Mas, não menos grave, o parecer do MAI subverte a lógica do próprio acórdão do Supremo (será que no MAI o leram sequer?) que pretende defender, "traduzindo-o" de uma forma que aquele, como citado neste texto, reputa de inconstitucional..Nesta triste figura, o MAI não está só: acompanha-o João Goulão. O mesmo João Goulão que em 2019 dizia ao DN "esse acórdão [do Supremo] assume um entendimento que do meu ponto de vista está longe do objetivo da lei, que era estabelecer uma distinção muito clara entre consumidores e traficantes", diz agora ao Público que ao descriminalizar a posse para consumo independentemente das quantidades "o PS está a aumentar a zona cinzenta"..Fica confuso, acham o ministro e Goulão, estabelecer de uma vez por todas que o consumo está descriminalizado. Iá: nada cinzento mesmo é defender a aplicação confusionista, trapalhona, inconstitucional e cruel de uma lei, dizendo uma coisa e o seu contrário consoante nem se percebe bem o quê.