Quem já viu não esquece... E podemos apostar que quem vai ver pela primeira vez ficará maravilhado pela sofisticada complexidade da cena de abertura de A Sede do Mal (1958), obra-prima de Orson Welles - o filme aí está, disponível no mercado do DVD..Tudo acontece na fronteira entre o México e os EUA. Através de um longo plano-sequência (entenda-se: uma ação filmada em continuidade, sem cortes de montagem), Welles mostra-nos alguém a colocar uma bomba-relógio na mala de um automóvel que, poucos momentos depois, começa a movimentar-se... A espera da explosão que se adivinha constitui um pequeno prodígio de mise en scène, além do mais introduzindo a personagem fulcral do oficial da polícia especializado em tráfico de drogas: em lua-de-mel, está também a atravessar a fronteira na companhia da mulher - ele é Charlton Heston, ela Janet Leigh..O suspense da situação está longe de esgotar as linhas de tensão que Welles coloca em movimento. A partir dessa cena de abertura somos projetados num labirinto de relações envolvendo personagens insólitas, ora transparentes ora indecifráveis - por exemplo, um cansado e amargo polícia, interpretado pelo próprio Welles, ou a dona de um bordel, com Marlene Dietrich, didaticamente, a desafiar a sua própria mitologia..Lembremos, sobretudo, que Welles, aqui ainda a trabalhar com um grande estúdio (Universal Pictures), nunca deixou de ser um genuíno experimentador, neste caso transfigurando as regras do clássico filme noir para criar pesadelo trágico enraizado em sinais muito realistas. Desde a sua lendária longa-metragem de estreia - O Mundo a Seus Pés (1941) -, ia consolidando uma obra marcada por muitos problemas de produção, mas sempre comandada pelo desejo radical, porventura insensato, de expor as contradições mais fundas da identidade humana através da singularíssima arte das imagens e dos sons..É verdade que algumas vozes do mercado insistem em desvalorizar o espaço de consumo do DVD, reforçando o fetiche das chamadas plataformas de streaming... O certo é que, com mais ou menos tensão, pode haver lugar para todas as vertentes de difusão: o aparecimento de A Sede do Mal constitui um exemplo modelar da capacidade de o DVD nos fazer (re)descobrir um clássico absoluto.